Publicados em dois volumes de 12 peças cada, em 1910 e 1913, os Prelúdios Para Piano constituem algumas das mais notáveis realizações de Claude Debussy. O compositor, que chamava o instrumento de “caixa de martelos e cordas”, extrai do piano sonoridades singulares e inusitadas. Se a qualificação de “impressionista” — recusada por Debussy — é imprecisa ao propor uma aproximação com o que faziam os célebres pintores franceses da segunda metade do século xix, o fato é que o compositor cria efeitos que evocam imagens e até aromas, construindo um universo sonoro singelo e delicado.
Entre 2001 e 2007, o compositor britânico Colin Matthews dedicou-se a escrever arranjos orquestrais para os Prelúdios. Sua preocupação foi menos a literalidade que a fidelidade ao espírito de cada peça. “Foi fascinante encontrar os meios de transcrever características que são, à primeira vista, totalmente pianísticas para a música orquestral e cuja retrotradução para o piano deveria ser igualmente difícil”, disse.
Um dos prelúdios mais conhecidos e apreciados é “La Cathédrale Engloutie” [A Catedral Submersa]. Impossível evitar as associações evocadas pelo título escolhido. O clima onírico é reforçado pelas harmonias abertas e pelos acordes longamente sustentados, a aproveitar o máximo da reverberação do som, como se as notas pudessem se acrescentar sem conflitos. A versão de Matthews é grandiosa e explora sinos e campanas numa menção direta à catedral do título.
“Général Lavine — Eccentric” [General Lavine — Excêntrico] é produto do interesse de Debussy pelo jazz. Em 1910, o compositor ficara fortemente impressionado com a apresentação do palhaço americano Edward Lavine, no Théâtre Marigny, na célebre Avenue des ChampsÉlysées. Uma das mais populares figuras do vaudeville à época, Lavine se apresentava como “o homem que nunca largou o exército” — mote a partir do qual construía seu sketch. Daí o “general” do título e também o ritmo do cakewalk na peça (que aparece também no último movimento de Children’s Corner). Na orquestração de Matthews, a presença marcante de trompetes reforça a referência militar.
Em artigo na edição de maio da Revista Osesp – por ocasião do recital de Éric le Sage e Frank Braley, em que interpretaram versão para dois pianos de La Mer —, Marcelo Coelho chamou a atenção para o fato de que, ainda hoje, o tom evanescente do Prélude à l’Après Midi d’un Faune [Prelúdio à Tarde de um Fauno] (1894), continua a predominar na imagem que temos de Debussy. “Embora La Mer seja uma obra tipicamente ‘debussysta’ na sua capacidade de evocar efeitos de água, de sol, de sombra e luz, chama de fato a atenção que o primeiro e o terceiro de seus movimentos não recusem a retórica sinfônica do final de efeito, harmonicamente satisfatório e conclusivo”, diz ele. Ao notar um certo “ruído” na apreciação mais vulgar que se faz do compositor, Coelho propõe uma escuta atenta às turbulências que agitam o mar de Debussy.
Isso dito, não vale a pena buscar na música de La Mer componentes propriamente descritivos. Numa resenha sobre uma apresentação da Sinfonia nº 6 — Pastoral, de Beethoven, escrita para um jornal parisiense, Debussy afirmou que o sucesso da peça não se devia a seu suposto “mimetismo”, mas sim à capacidade do compositor de “captar os sentimentos invisíveis da natureza”. Também é eloquente o fato de que o francês tenha alterado sucessivas vezes os subtítulos de cada um dos três movimentos de La Mer (sem alterar a música a que correspondiam).
Mais que os elementos programáticos, interessa destacar o uso inteligente que o compositor faz de recursos como progressões por tons inteiros e acordes quartais. A escrita de Debussy é de uma maestria poucas vezes alcançada e é indiferente se evoca direta ou indiretamente o mar (para mim, a evocação é tão inequívoca quanto uma tela de Turner).
Conta-se que durante os ensaios para a estreia da peça, em 1905, os violinistas teriam amarrado lenços de pano na ponta de seus arcos em sinal de protesto contra a estranheza da peça. Não surpreende que a reação do público no concerto tenha sido sobretudo fria. Poucos anos depois, em janeiro de 1908, quando Debussy regeu em público pela primeira vez, apresentando La Mer e outras composições suas, o sucesso da peça foi estrondoso.
É por essas e outras que esta obra-prima merece ser reescutada sempre. A hipótese forte de Marcelo Coelho é que La Mer concilia duas tendências na música sinfônica francesa de inícios do século xx: “a herança da ‘forma cíclica’ — a grande obra nascida de uma célula única, na lição de Liszt aproveitada por César Franck, Saint-Saëns e Vincent d’Indy — e a tradição francesa da música de ballet, com seus ‘quadros’, personagens, aparições, vinhetas e volteios”. Ouvir La Mer é pensar nisso tudo — e banhar-se em boa música.
RICARDO TEPERMAN é editor da Revista Osesp e doutorando no Departamento de Antropologia Social da FFLCH-USP.
O Concerto Para Piano de Scriabin é baseado mais no passado do que no presente ou no futuro imaginado. Trata-se de uma peça convencional escrita de maneira não convencional, lembrando muito de certo modo Chopin, como seus críticos jamais se cansaram de dizer. O Concerto traz um elemento místico, sinestésico: o movimento intermediário é escrito em Fá Sustenido Maior, tonalidade que Scriabin associava à cor azul, a ideais elevados e a pensamento espiritual. O movimento é um conjunto contemplativo de cinco variações de um tema ao estilo coral, ouvido nas cordas com surdina. A música é brumosa, desfocada, cheia de sentimento.
A estrutura dos movimentos externos é transparente, ao modo do século xviii, mas com polirritmos e uma ênfase singular na mão esquerda — característica importante de Scriabin, como pianistas bem sabem. O solista alterna frases com a trompa e com o clarinete, o poeta-compositor olhando para a beleza da lua em certas passagens, clamando por ela em outras. A ênfase é posta nos acordes dominantes alterados, e as dissonâncias são resolvidas de maneira convencional, ao contrário do que ocorreria em obras posteriores, quando seriam estendidas em êxtase. Scriabin terminou a orquestração apressadamente, com seu iminente casamento coincidindo com a estreia, e pediu a ajuda de Rimsky-Korsakov, cujo Concerto Para Piano sofria do problema oposto: orquestração inspirada, mas temas que eram clichês de lojas de suvenires russas.
SIMON MORRISON é professor de Música na Universidade de Princeton e autor de The People’s Artist: Prokofi ev’s Soviet Years (Oxford University Press, 2009) e Russian Opera And The Symbolist Movement (University of California Press, 2002), entre outros livros. Tradução de Rogério Galindo.
A Flock Descends Into The Pentagonal Garden [Um Bando de Pássaros Pousa no Jardim Pentagonal], de 1977, pertence não só à série de “jardins” — em que se encontra também Spirit Garden [Jardim dos Espíritos] — como a um grupo denominado “Yume to Kazu” [Sonho e Número], composto por obras que têm o lado onírico como tema, inspiradas em sonhos do próprio Takemitsu, e escritas com um método que trabalha com relações numéricas.
A Flock Descends... surge de um sonho em que Takemitsu vislumbrava um bando de pássaros brancos, liderados por um pássaro negro, voando em direção a um jardim. O tema dos pássaros é tocado pelo oboé, utilizando uma escala pentatônica da música japonesa tradicional. Das notas da escala, ele cria novas pentatônicas que se sobrepõem, formando o jardim, cujo pentágono se relaciona diretamente com as cinco notas da escala. Num complexo jogo de somas, Takemitsu define acordes a partir dessas notas, e o efeito é muito próximo aos acordes tradicionais do sho (instrumento de sopro tradicional utilizado no gagaku, um tipo de música cerimonial antiga da corte nipônica). A textura resultante define o espaço do jardim, onde se encontram diversos objetos, sobrevoado pela linha do oboé.
Mesmo com a utilização de elementos matemáticos, a obra de Takemitsu parece ser avessa às análises musicais que tentam explicar a modernidade que outrora o inspirara. No caso de A Flock..., as explicações deixadas pelo compositor não tornam claras as relações matemáticas, e a análise dos críticos é em boa parte baseada na especulação e na comparação com obras anteriores.
Em Takemitsu, a expressão é mais importante que a obediência a regras preestabelecidas, o que deixa clara sua utilização, mesmo que inconsciente, da estética japonesa. As diferentes texturas de A Flock Descends... ultrapassam a música meramente descritiva. Elas remetem à tradição nipônica de utilizar o som como espaço, criador de efeito e ambiente, e não como definidor de um tempo linear, uma descrição real ou uma narrativa.
Da mesma forma, as pausas também operam na criação desse espaço. O que o Ocidente chama de silêncio, em oposição a som, a cultura japonesa chama de ma. Esse conceito, de difícil tradução, remete a um “entrelugar”, um vazio pleno de sentido e potência, captado pela intuição, que não se opõe à existência do som. “Sonho e número” são dois valores presentes de alguma maneira em toda a obra de Takemitsu, não em tensão, mas, como numa das imagens que o compositor tanto gostava de evocar, num oceano em que não há nem leste nem oeste.
LUIZ FUKUSHIRO é mestre em Educação pela Universidade de São Paulo e revisor da Revista Osesp.
PROGRAMA
CLAUDE DEBUSSY [1862-1918]
Dois Prelúdios [1909-13] [
Orquestração de Colin Matthews [2001-2007]]
- La Cathédrale Englouti [A Catedral Submersa]
- Général Lavine-Eccentric [General Lavine-Excêntrico]
10 MIN
ALEXANDER SCRIABIN [1872-1915]
Concerto Para Piano em Fá Sustenido Menor, Op.20 [1896]
- Allegro
- Andante
- Allegro Moderato
28 MIN
TORU TAKEMITSU [1930-96]
A Flock Descends Into The Pentagonal Garden [Um Bando de Pássaros Pousa no Jardim Pentagonal] [1977]
13 MIN
CLAUDE DEBUSSY [1862-1918]
La Mer [O Mar] [1903-05]
- De l’Aube à Midi Sur la Mer [Do Amanhecer ao Meio-dia no Mar]
- Jeux de Vagues [Jogo das Ondas]
- Dialogue du Vent et de la Mer [Diálogo do Vento e do Mar]
23 MIN