A outra. A amante. Figuras do imaginário literário, também na ópera aparecem estas ”concubinas”. Mais do que literalmente uma “segunda familia”, penso nas óperas cuja história serviu de inspiração a mais de um compositor.
Assim é o caso da Turandot de Busoni ou La Bohème de Leoncavallo, à sombra das obras homônimas de Puccini. Há várias versões para Fausto de Goethe, por artistas tão diversos quanto Boito, Gounod, Berlioz, Schumann,
Spohr ou ainda Busoni. A fascinante Manon de Prevóst inspirou Puccini, Massent, Auber e Henze. Beaumarchais e seu barbeiro de Sevilha, dançou à música de Rossini ou Paisiello, e passou “une folle journée” ao som de Mozart, Milhaud ou mesmo Marcos Portugal ou Mercadante — apenas alguns de muitos exemplos. Le Vin herbé, do suíço Frank Martin, embora seja um “oratório secular”, é a “outra versão” de Tristão e Isolda.
Reconta a mesma lenda medieval que deu origem à ópera de Wagner, mas de um modo muito original: uma pequena jóia musical que faz uso de 25 coralistas, dois violinos, duas violas
e dois violoncelos, um contra-baixo e piano — e nada mais. Seja pela economia de meios ou pela estética, a obra de Martin é deliberadamente não-germânica. O “desafio” de criar um “outro Tristan” nestes termos, foi ainda maior se pensarmos que a obra foi composta entre 1938 e 1941, em plena Segunda Grande Guerra, quando, é importante lembrar, a figura de Wagner e o que (re)significava tinha especial importância.
Seria um movimento de resistência aos horrores de seu tempo? O fato é que, ao contrário dos vários exemplos citados acima, Le Vin Herbé não procura superar ou distanciar-se do seu famoso antecessor; ao contrário, parece “funcionar” em comparação com este. Em ambas as tramas estão presentes a mesma história de adultério entre o Rei da Cornualha e Isolda, princesa irlandesa. Porém, ao passo que Wagner faz uma leitura schopenhaueriana da lenda medieval, o texto de Martin baseia-se não diretamente no mito de Tristão, mas sim na versão de Joseph Bédier para a história. Muito do fascínio da ópera de Wagner está na maneira como o amor aparece retratado, como uma angústia sem a qual não é possível viver, sentimento ambíguo, torturante, indomável — e muito próximo das lutas entre consciente e inconsciente que Freud descreveria apenas alguns anos mais tarde. Se Isolda grita seu ódio e desejo de vingança, a orquestra canta o amor incontrolável, liberado graças à desculpa do filtro do amor. Frank
Martin por sua vez fala abertamente da miséria do amor, um amor acidentalmente forjado pela poção fatal, injusto e doloroso — tão ao sabor da desesperançosa época de sua composição quanto das últimas palavras da ópera.
Onde Martin foi intimista, contido dentro da sua forma de oratório, Wagner foi dramático e grandioso. Uma história desenvolvendo-se como liberação dos sentidos, a outra como profecia de condenação. Não será coincidência que Wagner termina seu grande drama com a palavra “Lust” (felicidade - ou até desejo, alegria) enquanto que Martin inicia a sua versão sob o signo da morte e põe na boca de Isolda “desastre”, como uma de suas primeiras palavras.
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Fatalista ou ambíguo, o Tristan de Wagner encerra em si muitos segredos e amores frustrados. No entanto, poucas obras da música ocidental têm em sua gênese tanto de verdade; de “vida real.” Basta pensarmos que como “estudos” para a grande ópera de Wagner estão suas cinco Wesendonck Lieder (“Canções de Wesendonck”).
Compostas entre 1857 e 1858, são a materialização musical do triângulo amoroso vivido por Wagner, Mathilde Wesendonck e
seu marido Otto, mecenas do compositor. O paralelo com o amor proibido e traidor da lenda medieval é tanto que a 3ª e a 5ª são descritas em suas partituras como “estudos para
Tristão”. Nas cinco canções para voz feminina e, originalmente, piano (mais tarde orquestradas) está traduzido claramente o desejo pela “outra”, pelo amor proibido; a fantasia e frustração amorosa do amante face à incontornável realidade (pessimista e sufocante) do amor. Nesta ‘perfeita atmosfera de traição e amor reprimido”, desempenharam Mathilde, Wagner e seu amigo e mecenas, Otto, os papéis de Tristão, Isolda e Rei Marke.
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Cinco também são as canções do opus 104
de Brahms, para coro mixto de 4 ou 6 vozes, a cappella. Nas duas primeiras, Vigília I e II, com texto de Friedrich Rückert — o mesmo autor que anos mais Mahler usaria como inspiração para seus Rückert Lieder — o compositor cria uma atmosfera quase religiosa para uma cotemplação da descoberta do amor. Mas será a nova experiência algo feliz, ou incompreensível? São, a grosso modo, as mesmas questões centrais que permeiam Le Vin Herbé e Wesendonck Lieder.
Assim, já nas mudanças drásticas de dinâmica da primeira e na brevidade da segunda canção (pouco mais de vinte compassos) dessas Fünf Lieder, Brahms parece sugerir os temas das canções seguintes: em Letztes Glück (Última Alegria), poema de Max Kalbeck, onde o vento
do outono chega como um derradeiro momento de felicidade antes da chegada do inverno, iludido pela breve esperança da primavera; depois, a irrecuperável perda da juventude, na visão do poema folclórico da região da Boêmia, em Verlorene Jugend (Mocidade Perdida), onde mesmo uma breve atmosfera de alegria é apenas lembrança da força da vida face à inevitável mortalidade; e finalmente, a quinta canção Im Herbst (No Outono).
Esta última obra do ciclo, apesar de contar
com uma estrutura de aparente simplicidade,
é possivelmente uma das mais intensas obras corais já compostas, merecendo um estudo
à parte. Resgatando climas e situações relacionados às canções, o texto de Klaus Groth, dividido em três versos, serve ao mesmo tempo de união e ponto de convergência dramática da obra como um todo: a estação que precede o inverno, associado à escuridão e à morte, anuncia a inevitável passagem do tempo humano — e o homem toma plena consciência da finitude de sua vida. A lágrima que corre nas suas faces é tanto de tristeza quanto de alegria. Tanto numa obra quanto na outra, a amorosa e incontornável luta do ser humano com e pelo amor.
ANDRÉ HELLER-LOPES professor da Escola de Música da UFRJ,
Doutor pelo King’s College (Londres) e diretor artístico
do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
Leia sobre a obra Tristão e Isolda do compositor Richard Wagner no ensaio "Mito e Subjetividade na Noite Amorosa de Tristão e Isolda", de Jorge de Almeida, aqui.