GUSTAV MAHLER
Sinfonia nº 7 em Mi Menor
LANGSAM (ADAGIO). ALLEGRO CON FUOCO
NACHTMUSIK [NOTURNO] I: ALLEGRO MODERATO
SCHERZO: SCHATTENHAFT. FLIESSEND, ABER NICHT SCHNELL [SOMBRIO.FLUIDO, MAS NÃO RÁPIDO]
NACHTMUSIK [NOTURNO] II: ANDANTE AMOROSO
RONDO FINALE: ALLEGRO ORDINARIO. ALLEGRO MODERATO MA ENERGICO
1H17MIN
Em 1904, no auge da carreira de regente e já gozando de sólida reputação como compositor, Gustav Mahler enfrentou um momento de desoladora seca criativa. Seguindo o padrão corrente de procurar inspiração em cenários naturais impactantes, foi para as montanhas do Tirol em busca da almejada renovação das ideias. Lá, começou a esboçar os temas que viriam a ser os movimentos pares de sua 7ª Sinfonia, as duas “Nachtmusik” (Noturnos).
No ano seguinte, novo período de aridez mental o levou às montanhas Dolomitas, mas dessa vez a bela paisagem não lhe ofereceu estímulo. Foi na volta da viagem frustrante que o som ritmado dos remos na água serviu de fagulha para a introdução de sua sinfonia mais extensa. Aos dois noturnos, compostos no ano anterior, faltava um fio condutor, que orientasse a escrita dos movimentos externos. A partir do caráter da introdução, o 1º, 3º e 5º movimentos foram compostos em rápida sequência, no incrível espaço de um mês; mas, depois de terminar a composição, Mahler decidiu engavetá-la. Temia que fosse mal recebida, e só a trouxe a público em 1908, em Praga. Alterou detalhes até a estréia. E, se não chegou a ser rejeitada, a sinfonia também não causou maior entusiasmo.
Ainda hoje ela continua sendo a mais polêmica das obras de Mahler. Longa, ambiciosa, audaciosa, com instrumentação inaudita, texturas densas, revolucionária exploração de sonoridades, movimentos aparentemente desconexos (apesar de uma simetria geral que organiza a estrutura), não é peça fácil, que agrada de imediato. Se as sinfonias que a precedem têm um “programa” relativamente simples de seguir, esta não conta uma história linear, e exige do ouvinte imaginação e concentração. Mahler explora dissonâncias ardidas e modulações bruscas que levam a tonalidades distantes. Expandindo ao máximo o estilo vienense, em um exagero que pode parecer pesado, carregado de cores e intenções a ponto de se tornar difícil de digerir, essa é uma obra que aponta para o século seguinte e constitui o apogeu da escrita sinfônica do autor. Talvez para nós, que vivemos numa época que valoriza a fragmentação e a simultaneidade, a própria falta de homogeneidade e o excesso de informações constituam atrativo especial.
Na introdução, a marcha fúnebre, sugerida pela cadência inspirada nos remos, é quebrada pelo ritmo pontuado dos metais e madeiras, que provêm um fluxo de energia constante. O movimento é longo e imponente, fazendo uso dos metais, que tradicionalmente retratam a inevitabilidade do destino. Curiosamente, a percussão, ao invés de reforçar a carga dramática desta simbologia, aparece como elemento de alívio e alegria. Poderíamos facilmente imaginar uma viagem noturna de carruagem por uma paisagem nevada. Não é viagem desprovida de perigos, mas o ponto focal da música, antes de ser a ameaça escondida, é o deslumbramento com o poder e a beleza do ambiente, uma espécie de imersão no fatalismo.
O primeiro noturno, nostálgico e com ecos de bandas militares, teria sido inspirado pelo quadro “A Ronda Noturna”, de Rembrandt. Se antes a natureza dominava a cena em toda a sua força, aqui ela está presente, porém mais amena. As madeiras emulam cantos e arrulhos de aves, e frases começadas por um instrumento são finalizadas por outro, em jogo delicado de ecos e transformações por expansão. O início exuberante vai sendo permeado de mistério, com a adição de passagens de indisfarçada sensualidade que se insinuam em meio à marcha. A escrita é gentil e poética, e mesmo as ousadias de linguagem, como o arco percussivo nas cordas, não têm intenção de agredir, mas sim de criar variedade de timbre.
O Scherzo que se segue é fantasmagórico e assustador, mas de maneira tão estereotipada que carrega em si sua negação, como uma paródia do clima de pesadelo que associamos à noite. É uma dança macabra, em que os instrumentos convidados a bailar parecem estar procurando a pulsação, sem conseguir encontrá-la. Os acentos em tempos fracos e a falta de “chão” tonal criam uma valsa distorcida em que há uma corrente de ansiedade sob o lirismo sempre prestes a se esfarelar. A ênfase do movimento está na volatilidade, na incompletude, na abstração, e ele é o mais curto da sinfonia justamente para não dar ao ouvinte a chance de desvendá-lo por completo: quando começamos a entender um ritmo ou um pensamento, ele se desfaz no ar. O movimento termina repentinamente, em gesto paradoxalmente gracioso.
O segundo noturno, deliciosamente arcaico, enfatiza as cordas dedilhadas, acrescentando à harpa os timbres inusitados do violão e do bandolim, que aparecem pela primeira vez em obra sinfônica. A orquestra tem a massa abrandada para estabelecer o efeito de serenata noturna. Notamos uma oposição constante entre a textura latina, sensual, leve e despreocupada dos solistas e as vozes mais densas e escuras do grupo orquestral, como em uma releitura do concerto grosso barroco. A intervenção camerística sutil no todo orquestral funciona como metáfora para o próprio ato de ir a um concerto: uma inserção de beleza no cotidiano brutal.
O Rondo Finale, que começa de maneira explosiva, já foi descrito como a luz do dia que irrompe, com suas feiras, quermesses, balbúrdias e atribulações. Geralmente o Rondó é uma forma em que há um estribilho recorrente, mas aqui o retorno se dá por caminhos pedregosos e inesperados, e o tema vai se modificando e descaracterizando a cada volta. Talvez seja a música mais moderna de Mahler, com súbitas mudanças de caráter, superposições, frases interrompidas, guinadas violentas, caos constante, e sequências de intervalos de quarta que criam sensação de instabilidade e desconforto. Ao final, o tema principal do primeiro movimento é reestabelecido, em uma macro-representação do próprio conceito de rondó.
Laura Rónai