HEITOR VILLA-LOBOS [1887-1959]
Uirapuru [1917]
Uirapuru (1) foi concebido como um poema sinfônico e um balé, e teve sua estreia em 1935, com Villa-Lobos à frente da orquestra do Teatro Colón em Buenos Aires. O fato de essa performance somente ter ocorrido dezoito anos após a criação da peça (1917), coloca em questão a data correta de sua composição. Paulo de Tarso Salles, especialista na obra de Villa-Lobos, identifica na própria partitura tanto o “academicismo franco-wagneriano dominante no Brasil no início do século XX”, quanto o “modernismo stravinskiano/varèsiano” (2) que o compositor brasileiro só viria a conhecer efetivamente na França, nos anos 1920. Como elemento característico wagneriano podemos citar o paradigmático “acorde de Tristão”, que pode ser ouvido logo nos primeiros momentos da peça depois do glissando inicial de trombones, cordas e xilofone. Já a melodia estilizada criada por Villa para o “canto do uirapuru” na flauta, que flutua sobre a textura orquestral edificada em oito camadas, aparenta-se mais com os volteios do fagote que abre A Sagração da Primavera de Stravinsky do que com o próprio canto do pássaro brasileiro. Mas é a presença inconteste de uma inventividade plural, traço marcante do compositor carioca, que faz de Uirapuru uma das peças mais representativas de sua versatilidade na criação de paisagens sonoras.
CLAUDE DEBUSSY [1862-1918] [Compositor Transversal]
La Mer [1905]
Escrita no início do século passado, La Mer [O Mar] ocupa, na produção de Debussy, o espaço equivalente àquele que uma sinfonia relevante ocupava para compositores dos períodos clássico e romântico. Excluindo-se o fato comum de se tratar de uma peça para grande orquestra, aqui tudo mais difere. O crítico norte-americano Alex Ross sugere que o ponto de virada para o compositor francês foi provavelmente a experiência da escuta, ainda no século XIX, da música de uma trupe teatral vietnamita e de um conjunto de gamelão javanês: “contém todas as gradações, até mesmo algumas que já não sabemos mais nomear, de modo que tônica e dominante não passam de fantasmas vazios para uso de crianças espertas”, escreveria o próprio Debussy naquela ocasião. (3) La Mer flui, assim, nesse tênue vai e vem de sensações sutis das gradações suavemente distintas, nos movimentos pendulares entre os blocos harmônicos, nos tons pastel de sua orquestração com nuanças e transparências únicas. Em La Mer de Debussy é a insistência na leveza que provoca os estados mais profundos, atravessando pouco a pouco antigas escutas, sedimentadas pelo tempo. E ainda hoje pode ser assim.
SERGIO MOLINA é compositor, doutor em música pela USP, coordenador da pós-graduação em canção popular na Fasm (SP) e professor de composição no ICG/UEPA de Belém.
1. Peça gravada pela OSESP, selo NAXOS, 2015. Regência Isaac Karabtchevsky.
2. SALLES, Paulo de Tarso. Villa-Lobos: Processos Composicionais. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009, p. 25 e 113.
3. ROSS, Alex. O Resto É Ruído: Escutando o Século xx. Tradução de Claudio Carina e Ivan Weisz Kuck. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 55.
Leia sobre o compositor Claude-Achille Debussy no ensaio "A Revolução Suave de Claude Debussy", de Paulo da Costa e Silva aqui.