A Grande Missa em Dó Menor, de Mozart, é a obra central da trilogia formada também pela Missa em Si Menor, de Bach, e a Missa Solemnis, de Beethoven — três monumentos que sintetizam quase 75 anos de música sacra europeia.
Depois de abandonar, em maio de 1781, os serviços que prestava ao arcebispo de Salzburgo, Mozart encontrava-se automaticamente desobrigado de compor música sacra de qualquer espécie. No entanto, começou a escrever uma nova missa durante o verão de 1782, em Viena. Em carta ao seu pai, datada de 4 de janeiro de 1783, Mozart afirmava ter feito o juramento de compor uma missa para ser apresentada em Salzburgo por ocasião da viagem que faria à sua cidade natal com a noiva Constanze Weber. O compositor mencionava ainda que, como prova de seu comprometimento, já teria esboçado metade da partitura de uma missa bastante promissora.
Mozart empregou nessa obra a forma missa-cantata, que já estava em desuso na época e cuja expressão máxima é a esplêndida Missa em Si Menor, de Bach. Ignoramos as razões que levaram Mozart a abandonar a composição dessa grande missa, sem concluí-la. Não há vestígios da parte final do “Credo” nem da existência do “Agnus Dei”.
A obra foi executada pela primeira vez em 26 de agosto de 1783, após um único ensaio, no mosteiro beneditino de São Pedro de Salzburgo, durante um ofício religioso. Constanze cantou a parte de primeira soprano. Não sabemos o que o compositor fez com a parte que ainda não havia sido composta, mas provavelmente utilizou o “Agnus Dei” de uma de suas missas anteriores.
Dessa grandiosa composição emana a presença dos espíritos de Bach e Händel, como também de Hasse, Graun e, por momentos, de Pergolesi e Scarlatti. Mais do que qualquer outra obra religiosa coral-sinfônica da época, a Grande Missa em Dó Menor de Mozart sintetiza todo o século xviii.
O título deriva do movimento inicial, o único em Dó Menor. Este magnífico “Kyrie” é ao mesmo tempo penitente e soberanamente otimista; sua melodia evoca até mesmo certa sensualidade.
O “Gloria” divide-se em oito diferentes seções, de tonalidades e expressão muito contrastantes, concebidas de acordo com a função litúrgica em quese inserem. Primeiramente, há o “Gloria in Excelsis Deo”, apresentando repetidamente dois admiráveis temas. O primeiro lembra claramente um trecho do “Aleluia”, do Messias de Händel, e o outro, calmo e lírico, é delicadamente amparado pelas cordas. A seguir, temos um elegante movimento de sonata: a ária “Laudamus Te”. “Gratias Agimus Tibi” é um movimento lento e majestoso, de ritmo penetrante e rigoroso, lembrando também Händel, de quem Mozart foi sincero admirador. Um dueto para duas sopranos e cordas é seguido de um sublime “Qui Tollis”, um movimento para coro duplo. O “Quonian” é um trio, no qual o tenor solista dialoga com duas sopranos. O ritmo melódico e os rápidos melismas nos transportam novamente para a exuberância da abertura da seção do “Gloria”. Finalmente, após uma solene introdução de seis compassos sobre as palavras “Jesu Christe”, surge uma fuga em Dó Maior, que evoca o final da Sinfonia Júpiter. Esta fuga coral com seus muitos stretti,¹ suas inversões temáticas e seus episódios floreados, tem sido muitas vezes comparada à fuga composta por Bach em sua Missa em Si Menor.
Como já observado, o “Credo” é textualmente incompleto. No primeiro de seus dois movimentos, ouvimos um exultante ato de fé. Alegre diálogo entre sopros e cordas acompanha o coro, como a afirmar a crença na salvação espiritual. No segundo movimento, a conhecida ária “Et Incarnatus Est” expressa o dogma que é o fulcro do cristianismo: o mistério de Deus que se faz homem. Esse mistério é manifestado por soprano, flauta, oboé e fagote, com cordas e órgão, num canto ao mesmo tempo terno, rapsódico, amoroso e estático. Nada é necessário depois disso: a profissão de fé é completa e perfeita, mesmo se as palavras são os elos faltantes.
Após os dois movimentos que Mozart compôs para o “Credo”, há mais dois movimentos para coro duplo. Primeiramente, o majestoso “Sanctus”, com uma brilhante e jovial fuga sobre as palavras “Hosanna in Excelsis”. O baixo solista, as duas sopranos e o tenor formam o quarteto para o “Benedictus”. O coro duplo retorna para a conclusão da fuga do “Hosanna” no final da Missa, num clima de glorioso esplendor.
A instrumentação da Missa levou em conta os recursos existentes em Salzburgo: uma flauta (utilizada somente no trecho “Et Incarnatus Est”), dois oboés, dois fagotes, duas trompas, dois trompetes, três trombones, tímpanos, cordas e órgão.
O fato de Mozart jamais ter concluído a Grande Missa em Dó Menor fez com que a obra se tornasse objeto de muitas especulações. O compositor reaproveitou vários trechos dessa Missa em 1785, quando precisava criar com grande urgência o oratório Davide Penitente e dispunha de pouquíssimo tempo para a elaboração da nova obra.
Depois da Grande Missa, Mozart somente voltou a abordar o gênero sacro em seu último ano de vida, ao compor o célebre Réquiem, obra que também permaneceu inacabada.
AMARAL VIEIRA é compositor, pianista, musicólogo e pedagogo. É membro da Academia Brasileira de Música e apresentador do programa de rádio Laudate Dominum, na Cultura FM.
1 Stretto (plural: stretti): Forma de imitação que precede o final da fuga e das formas derivadas, quando o tema e a resposta se sucedem com entradas cada vez mais próximas.
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Leia sobre a Sinfonia nº 4 no ensaio "Sinfonia de Schubert: Maravilhas e mistérios", de Christian Wasselin aqui