Ao trazer obras importantes dos séculos xix e xx, este programa abrange enormes possibilidades do repertório para dois pianos e piano a quatro mãos. Toda a variabilidade de comunicação entre os dois instrumentistas é amplamente explorada, da cooperação mais sutil à oposição mais discrepante e áspera.
Schubert escreveu sua Fantasia em Fá Menor em 1828 e dedicou-a a sua pupila Karoline Esterházy. O vocabulário explorado na peça, assim como nas últimas sonatas para piano, representa o ápice da poética do compositor: pungência melódica, complexidade e fluidez estrutural, opulentos contrastes, economia de meios.
A primeira parte apresenta um tema melancólico em Fá Menor desenvolvido em evoluções dramáticas para retornar à atmosfera íntima na conclusão. A segunda parte, em Fá Sustenido Menor, apresenta um tema grandioso e ritmicamente dilacerado, com vibrantes trilos entre os dois executantes, dando dimensão orquestral à trama camerística. A terceira parte explode com uma dança fulminante de origem húngara, em que vigor e delicadeza contrastam em turbilhões fascinantes. Retornando à melodia inicial num “Allegro Molto Moderato”, Schubert conclui a peça entre monumentalismo arquitetônico e fragmentações resignadas.
Compostas em 1873-4, inicialmente para orquestra e depois para dois pianos, as Variações Sobre um Tema de Haydn, de Brahms, partem de uma melodia bastante original, organizada em duas frases de cinco compassos — assimetria estrutural que perpassa todos seus desenvolvimentos. As nove variações subsequentes exploram esse material de maneira ora lírica e ornamental, ora polimétrica e ritmicamente agitada.
A concepção orquestral dá à escrita pianística uma dimensão suculenta e antifonal, às vezes massiva e acórdica, outras, etérea e tranquila. Contrastando diferentes retratos do tema caleidoscopicamente transformado, as variações sucedem-se turbulentas, desfazendo-se num prestíssimo com surdina, em que a ideia original se evapora em granulações virtuosísticas entre os dois pianos. De maneira grandiosa e espetacular, Brahms recupera a melodia do Coral de Santo Antonio no final, após intensa fermentação polifônica, concluindo o ciclo de maneira exuberante e extrovertida.
Escrita em 1953, a Sonata Para Dois Pianos é sem dúvida uma das obras mais coesas e representativas do estilo heterogêneo e depurado de Francis Poulenc. Após uma abertura ácida e metálica, em que as cordas dos instrumentos vibram como sinos brutalmente percutidos, o discurso musical modula gradualmente para estruturas tonais-modais mais acessíveis e simples, dosando dissonâncias e consonâncias com grande habilidade teatral.
O segundo movimento oscila vigor neoclássico com passagens lentas escuras e quase expressionistas, compondo um quadro formal compacto e eficiente. Após um intermezzo lírico no terceiro movimento, em que a genialidade melódica do compositor brilha em toda sua rica inventividade, Poulenc conclui a peça com um explosivo “Allegro Giocoso” em forma rondó. Nesse movimento final, a cinemática neobarroca se aproxima dos sons de máquinas da música dos anos 1920, reminiscências de Prokofiev e Stravinsky. Jatos de força rítmica e momentos de coágulos dissonantes e angustiosos pontuam o discurso musical, com aspereza e impacto.
Ao adaptar para dois pianos Sete Peças do Mikrokosmos, Bartók procurava ampliar o repertório para seus concertos com Ditta Pásztory — uma maneira de garantir sua sobrevivência em território americano. As miniaturas representam todo seu vocabulário, vasto e multidirecional. Explorando o cromatismo de maneira vigorosa e controlada, o compositor utiliza de maneira personalíssima os doze sons de nossa escala convencional.
Mas não é só: Bartók aproveita melodias modais harmonizadas com extrema modernidade; traz suas pesquisas rítmicas metamorfoseadas num folclore imaginário; revitaliza técnicas contrapontísticas; explora contrastes e desníveis de texturas harmonicamente heterogêneas. Aqui, o compositor se expressa em toda a plenitude da maturidade.
PAULO ÁLVARES
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Bartók foi um dos pioneiros na pesquisa e na coleta sistemática de melodias populares, e por isso é considerado um dos primeiros etnomusicólogos. Esse material teve importância vital na sua linguagem musical e foi a maneira utilizada pelo compositor para se libertar da tradição tonal-romântica.
As Danças Romenas nasceram como uma coleção de peças para piano na década de 1910. São obras curtas e leves, mas de grande qualidade musical. A versão original, para piano, é ainda hoje a mais conhecida. Mas o próprio Bartók arranjou as Danças para orquestra e a popularidade da peça também motivou arranjos para diversas outras formações, como violino e piano, ou ainda sopros e cordas.
As mais de 150 peças para piano que compõem os seis volumes de Mikrokosmos foram escritas entre 1926 e 1939. Concebido como repertório didático para atender alunos iniciantes e avançados, o ciclo aproveita tanto elementos de tradições folclóricas quanto harmonias e ritmos empregados na música mais avançada de seu tempo.
CAMILA FRÉSCA é jornalista, doutora em música pela ECA-USP e autora de Uma Extraordinária Revelação de Arte — Flausino Vale e o Violino Brasileiro (Annablume, 2010).