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PRAÇA JÚLIO PRESTES, Nº 16
01218 020 | SÃO PAULO - SP
+55 11 3367 9500
SEG A SEX – DAS 9h ÀS 18h
08
jul 2016
sexta-feira 21h00 Araucária
Osesp: Guerrero e Poltéra


Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo
Giancarlo Guerrero regente
Christian Poltéra violoncelo


Programação
Sujeita a
Alterações
Claude DEBUSSY
Prélude à l'Après-midi d'un Faune
Henri DUTILLEUX
Tout un Monde Lointain - Concerto para Violoncelo e Orquestra
Igor STRAVINSKY
A Sagração da Primavera
INGRESSOS
  Entre R$ 42,00 e R$ 194,00
  SEXTA-FEIRA 08/JUL/2016 21h00
Sala São Paulo
São Paulo-SP - Brasil
Notas de Programa

 

Em 1862, quando Claude Debussy nasceu, Stéphane Mallarmé tinha 20 anos e compunha o primeiro de seus poemas [dos que são conhecidos hoje], além de um ensaio sobre L’Art Pour Tous [A Arte para Todos]. Nesse texto, ele invejava a música pelo mistério protetor de sua notação, em contraste com a vulnerabilidade da literatura na era vindoura da alfabetização universal. Na década de 1890, quando Mallarmé e Debussy se tornaram amigos, a inveja que o poeta sentia da música havia se ampliado e aprofundado; sua experiência musical e sua poesia, também. Na década de 1960, a poesia de Mallarmé inspirava muitos compositores a inventar novos tipos de notação, e seu mais famoso poema, L’Après-midi d’un Faune [A Tarde de um Fauno], mereceu o interesse de inúmeros outros músicos e amantes da música em todo o mundo, por ter inspirado Debussy a compor seu Prelúdio. [...]

 

Os anos de 1888 e 1889 foram importantes na vida de Debussy. Por neles se darem as primeiras edições significativas e apresentações públicas de sua música, por novas amizades, por novas experiências com a música de Wagner e de outros compositores, por vários projetos fascinantes nunca concluídos e pela realização de sua primeira obra-prima: La Damoiselle Élue [A Donzela Bem-Aventurada].

 

Nesses dois anos, ele fez a peregrinação em voga e foi ouvir as obras de Wagner em Bayreuth. Por fim, entre 1890 e 1893, definiu sua postura em relação a Wagner. Não se tratava de uma posição simples: por um lado, uma devoção cuidadosa às maravilhas da harmonia e da orquestração, sobretudo em Parsifal; por outro, uma firme oposição às formas exageradas, às pretensões religiosas e políticas e ao uso insistente de temas recorrentes no ciclo O Anel do Nibelungo. [...]

 

Em 1892, Debussy conhecia Mallarmé o bastante para convidar um novo amigo e mecenas, o príncipe André Poniatowski, para as noites de terça-feira na casa do poeta. Debussy levou Mallarmé e o príncipe para ouvir canto gregoriano na Igreja de Saint-Gervais, onde Charles Bordes (1863-1909) era regente.

 

No verão de 1892, Debussy comprou uma cópia da obra recém-publicada por Maurice Maeterlinck (1862-1949), Pelléas et Mélisande. Em 17 de maio de 1893, quando a peça foi apresentada em Paris, tanto Debussy quanto Mallarmé assistiram a ela. Debussy já estava em ação, transformando-a em sua única ópera completa (concluída em 1895 e executada pela primeira vez em 1902). Mallarmé escreveu uma resenha elogiosa.

 

Em vista de tudo isso, é razoável pensar que poeta e compositor discutiram juntos o Fauno e as várias possibilidades de música ligadas ao poema. [...]

 

A evidência de que Debussy começou a trabalhar no Fauno em 1892 é a presença dessa data em seu manuscrito, terminado em 1894. [...]

 

Em 3 de julho de 1895, ele assinou um exemplar da partitura já gasto pelo manuseio, apontando três erros de impressão. Em 9 de outubro, escreveu a seu amigo, e também compositor, Pierre Louÿs (1870-1925), dizendo que estava demasiadamente ocupado com os ensaios para apresentações do Fauno, sob a direção de Édouard Colonne, que aconteceu em dois domingos consecutivos, 13 e 20 de outubro.

 

WILLIAM AUSTIN foi professor de musicologia na Cornell University e publicou diversos livros, dentre eles Music in The 20th Century: From Debussy to Stravinsky (W. W. Norton, 1966). Aqui, trechos do livro Prelude to “The Afternoon of a Faun” (W. W. Norton, 1970), reproduzidos sob autorização da editora. Tradução de André Fiker.

 

 

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A particularidade de Tout un Monde Lointain... [Todo um Mundo Distante...], além do fato de ter sido concebida para um solista excepcional, Mstislav Rostropovich, reside na escolha do título e na aura poética que dele se depreende, a aura do mundo baudelairiano.

 

O título é extraído de um verso do poema “La Chevelure” [A Cabeleira], de As Flores do Mal: “Todo um mundo distante, ausente, quase defunto”. A partitura está tão impregnada da poética baudelairiana que cada um dos cinco movimentos traz como epígrafe alguns versos da célebre coletânea que causou escândalo quando da primeira publicação.

 

Durante as últimas semanas antes da estreia de Tout un Monde Lointain..., Rostropovich só estudara parcialmente a obra, cuja fatura era bem diferente daquilo que tinha costume de tocar. Meticuloso, Henri Dutilleux pensou então em “adiar o concerto”. Depois de numerosos ensaios com o compositor — que, na ocasião, o acompanhou ao piano, com a partitura da orquestra reduzida para esse instrumento —, Rostropovich passou a dominar a peça de maneira tão profunda que sua interpretação se tornou indiscutível.

 

Em conversas com Claude Glayman publicadas em livro, Henri Dutilleux esclarece: “Realizamos sessões de estudo em minha casa durante os dez dias anteriores aos primeiros ensaios da orquestra. Antes disso, para que Rostropovich pudesse estudar, a partitura tinha chegado até ele em Moscou em ‘pedaços separados’. Às vezes, eu o encontrava em cidades como Viena, Londres ou Moscou para lhe entregar as páginas recém-finalizadas.” E acrescenta: “Finalmente começaram em Aix-en-Provence os primeiros ensaios, apenas da orquestra, sob a regência de Serge Baudo. […] Desde o primeiro dia, Rostropovich estava perto de mim, reagindo exatamente como eu. Sentia que aquela música ia emergindo aos poucos, assumindo sua verdadeira forma, e aquela cumplicidade era uma coisa prodigiosa.” A estreia teve tanto sucesso que a obra foi bisada.

 

“Houles”, o movimento central, privilegia as cordas duplas no instrumento solista, antes que um crescendo orquestral resulte num verdadeiro êxtase, que dá a impressão de um efeito de espacialização em que a harmonia, expandida, parece “vir de longe” e aproximar-se do ouvinte.

 

Correspondências simétricas estruturam respectivamente o segundo e o quarto movimentos, centrados nas temáticas da vertigem e do duplo: por um lado, “Regard” [Olhar] e sua melopeia descendente de violoncelo solo, cujo título inicialmente previsto era “Vertige” [Vertigem] (“o instrumento plana longamente no registro superagudo”); por outro, “Miroirs” [Espelhos] e sua associação enigmática dos timbres da marimba (como “gotas d'água”), da harpa, dos tam-tans e das cordas, antes que a linha do violoncelo solista se insira nessa textura singular e se expanda num devaneio lírico.

 

Esses dois movimentos estão unidos pela mesma temática do “reflexo”: “Regard” cita em epígrafe os versos “O veneno que verte/De teus olhos, de teus olhos verdes,/Lagos em que minha alma treme e se vê ao inverso”, extraídos do poema “O Veneno”. Na partitura, o quarto movimento, “Miroirs”, é introduzido pelos admiráveis rasgos contidos no soneto “A Morte dos Amantes”: “Nossos corações serão duas vastas tochas/A refletirem suas duplas luzes/ Em nossos dois espíritos, espelhos gêmeos”.

 

A temática do reflexo que unifica essas duas sequências é uma constante estilística do imaginário de Dutilleux. O compositor cria efeitos de “espelho”: linhas convergentes ou divergentes em relação a um eixo de simetria horizontal e princípios de retrogradação que dão temporariamente a ilusão de recolhimento do tempo em si mesmo.

 

O primeiro e o último movimentos de Tout un Monde Lointain... também podem, a distância, ecoar reciprocamente. O primeiro, “Enigme” [Enigma], é acompanhado pela epígrafe “E nessa natureza estranha e simbólica”, extraída do poema xxvii de As Flores do Mal. Esse movimento nos mergulha num clima de mistério, cuja essência é captada pela cadência introdutória do violoncelo solista, seguida por uma sucessão de harmonias em leque na orquestra. Verdadeiro prolongamento por expansão da cadência inicial, esse será o ligame estrutural do conjunto da composição. A natureza enigmática do primeiro movimento caracteriza-se também pela presença de variações concebidas a partir de um material dodecafônico, técnica de escrita que Dutilleux já utilizara em “Obsessionnel” [Obsessivo], de Métaboles.

 

“Hymne” [Hino], último movimento, tem epígrafe retirada do poema “A Voz”: “Conserva teus sonhos;/Os sensatos não os têm tão belos quanto os loucos!” A conservação dos sonhos acaba por sobrepujar a idealização momentânea da beleza. O “Hino” final do Concerto, com a retomada de certo número de motivos anteriores, assemelha-se à concentração da memória contida em numerosos poemas de Baudelaire. Na coda, o violoncelo solista sustenta um tremolo, enquanto os “sonhos” evocados na epígrafe fazem prever a poética musical de outra obra concertante de Dutilleux, A Árvore dos Sonhos, de 1985.

 

Na origem de Tout un Monde Lointain... estava o projeto de um balé baseado em As Flores do Mal, iniciativa de Roland Petit. Dutilleux recusou a proposta, mas manteve a ideia de compor algo baseado em Baudelaire. A concepção de uma obra concertante para violoncelo nasceu paralelamente ao encontro com Mstislav Rostropovich em 1961, por intermédio de Igor Markevitch. Portanto, duas situações independentes cristalizaram-se numa única visão criadora que veio à luz no dia 25 de julho de 1970, em Aix-en-Provence.

 

MAXIME JOOS é musicólogo, autor de La Perception du Temps Musical Chez Henri Dutilleux (L’Harmattan, 1999) e professor de história da música e análise no Conservatório de Lille (França). Texto publicado originalmente no site da Cité de La Musique, em maio de 2014, Reproduzido sob autorização. Tradução de Ivone Benedetti.

 

 

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Cem anos atrás, a ruidosa estreia da Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky, colocou em pauta um novo arranjo na dialética entre civilização e barbárie. Em plena Belle Époque, a temporada da “mais ousada produção dos Balés Russos” chocou e seduziu o cultivado público de Paris.

 

O paradoxo estava na ordem do dia. A mesma civilização que exaltava os ideais de racionalidade e progresso, justificando assim a violenta colonização de boa parte do mundo, buscava na espontaneidade do “selvagem e primitivo” um contraponto a seu crescente mal-estar. A Sagração da Primavera, um ritual neolítico apresentado como obra de vanguarda, adquire um sentido mais amplo quando, para além do escândalo, é ouvida como um eco da crise histórica retratada pelas ambiguidades do modernismo europeu. Afinal, poucos anos antes, Picasso encontrara na arte africana a inspiração para o desenvolvimento do cubismo; Matisse exaltara a dança primitiva como resposta ao individualismo burguês; Gauguin pintara a exótica Polinésia com as cores de um desejo sem culpa; e Derain afirmara que “o grande perigo para a arte é o excesso de cultura”.

 

O novo alento, entretanto, não vinha de exóticas colônias distantes, mas do periférico e atrasado Império Russo, a meio caminho entre a Europa e o Oriente. Como lembra o musicólogo Richard Taruskin, a novidade da Sagração deve muito a um antigo debate da intelligentsia russa, que oscilava, desde o Romantismo, entre a exaltação urbana dos valores progressistas da “cultura europeia” e a idealização quase religiosa da simplicidade espontânea do “povo russo”. De Tolstói a Dostoiévski, de Tchaikovsky a Rimsky-Korsakov, os artistas russos se aqueceram nas fagulhas desse conflito e, questionando a “frieza” da pragmática burguesia europeia, acabaram incendiando a imaginação de toda a Europa, a ponto de Marcel Proust se referir à onipresente arte russa como uma “encantadora invasão”.

 

Um momento decisivo do diálogo entre a tradição russa e o modernismo europeu foi o polêmico sucesso dos Balés Russos, companhia fundada em 1909 por Serguei Diaghilev. O impacto de cada temporada ultrapassava em muito a cena artística, pois a sensualidade, a ousadia e a novidade de suas produções logo se tornavam assunto público, mobilizando admiradores e inimigos exaltados. 

 

Mas nenhuma outra obra causou tanta polêmica quanto A Sagração da Primavera. Os motivos começam, sem dúvida, com a escolha do tema: um ritual pagão de adoração à terra, que culmina no sacrifício de uma jovem virgem em homenagem ao renascer da primavera. A paternidade desse enredo é objeto de muita controvérsia. Os três “colaboradores” — Stravinsky, Nijinsky e Roerich — legaram versões conflitantes, e até mesmo Diaghilev, seguindo os seus autodeclarados “pouquíssimos princípios”, pretende uma improvável participação na ideia.

 

Stravinsky teria assumido a tarefa (ou sonhado com ela, como conta em suas memórias não muito confiáveis) de compor um enredo mítico “unificado por uma só ideia: o mistério e o jorro do poder criativo da primavera”. As várias seções da partitura, esboçada entre 1911 e 1913, trazem títulos diferentes em russo e francês, mas basicamente descrevem os diversos momentos do ritual panteísta.

 

Do ponto de vista musical, o uso de “recursos modernos” para expressar uma “música primitiva” seria a principal característica da Sagração, como bem notou Debussy (que tocou com Stravinsky a versão para dois pianos da obra, em junho de 1912). Seguindo a inspiração do programa (a ideia de um sacrifício individual em nome do bem coletivo), as “células motívicas” que constituem os principais temas da obra não são “desenvolvidas”, como na tradição musical do século xix, mas sim justapostas, condensadas e mesmo destroçadas, em nome do efeito geral. Ainda que parte significativa desses “temas” derivem literalmente de canções e danças populares russas (como descobriu Taruskin), o resultado está longe de ser folclórico, pois as melodias são submetidas a um tratamento “visceral” de expansão e contração contínua, de renascimento e morte. Na calculada “organização” dos motivos (e também de acordes e tonalidades distintas, no âmbito da harmonia), a aparente anarquia da Sagração é marcada por uma rigorosa articulação do contraste, como demonstrou Pierre Boulez numa análise minuciosa da partitura.

 

A Sagração da Primavera é um manancial de contradições, choques e paradoxos: civilização e colonização, no contexto político; primitivismo com recursos modernos, na música; forma orgânica e ritmo mecânico, na composição; música de concerto e coreografia, na gênese; sensualidade e violência, no enredo; e um bárbaro sucesso de escândalo, na estreia. Mais de um século depois, a Sagração ainda pode nos chocar? Qual o sentido do sacrifício ritual que ela um dia representou, diante das catástrofes dos séculos xx e xxi? Transformada num clássico, o interesse por suas contradições ainda sobrevive? São questões importantes, mas que certamente não mobilizarão o público de hoje com o mesmo ardor primaveril de cento e poucos anos atrás. Que nenhuma música consiga nos empolgar dessa forma talvez seja um chocante traço de barbárie da consagrada cultura de nossa época. [2013]

 

JORGE DE ALMEIDA é doutor em filosofia e professor de teoria literária e literatura comparada na USP. Tradutor e ensaísta, é autor de Crítica Dialética em Theodor Adorno: Música e Verdade Nos Anos Vinte (Ateliê, 2007). Leia a versão completa do ensaio “Dialética da Sagração e Paradoxos da Primavera” no site www.osesp.art.br.