O musicólogo Alfred Einstein sugeriu que o estudo de Mozart sobre as fugas de Bach representou “uma revolução e uma crise em sua atividade criativa”.1 A influência do gênio do Barroco teria surtido efeitos diretos em algumas das principais composições de Mozart, como o Réquiem e a Sinfonia nº 41 - Júpiter, mas também, de maneira difusa, na concepção cada vez mais polifônica de suas obras de maturidade.
A Fuga em Dó Menor foi escrita em dezembro de 1783, para dois pianos, e rearranjada em 1788, para orquestra de cordas, desta vez precedida por um adágio na mesma tonalidade. Alguns estudiosos sugerem que o compositor teria retornado ao exercício contrapontístico de 1783 como estudo preparatório para o movimento final da Sinfonia Júpiter, ele mesmo uma fuga.
A música de Mozart é frequentemente associada à leveza de espírito e à jovialidade. Adágio e Fuga em Dó Menor é um dos muitos exemplos que comprovam ter sido o compositor, também, um mestre no manejo dos lados sombrios da alma humana.
RICARDO TEPERMAN é doutorando em antropologia social na Universidade de São Paulo e editor da Revista Osesp.
1 Einstein, Alfred. Mozart: His Character, His Work. Oxford: Oxford University Press, 1965.
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Ramificações representa uma evolução do meu método de composição com texturas musicais complexas. É, por assim dizer, um ponto de chegada da transição entre o “denso e estático” e o “fragmentado e móvel”. O título se refere à técnica polifônica da composição por partes; de um lado, partes individuais que se contorcem conjuntamente e se movem em direções divergentes, de modo que o fio da voz se torna gradualmente desemaranhado. A forma total é constituída da alternância entre ramificação e unificação das partes e entre cisões e agrupamentos das camadas de textura que resultam desse processo. Do mesmo modo, existem nesta peça novos aspectos de uma harmonia microtonal.
Eu já trabalhava esporadicamente com desvios na afinação por temperamento igual (Réquiem, Volumina, Harmonias, Quarteto de Cordas nº 2). Novidade em Ramificações é a aplicação regular de uma ideia de harmonia hipercromática.
Isso se torna possível porque metade dos instrumentos de corda está afinada um quarto de tom acima da outra. Das diferenças resultantes de entonação emerge uma tal flutuação de alturas que dificilmente se percebem intervalos exatos de um quarto de tom. Apenas em alguns pontos mais densos podem surgir clusters de aproximadamente um quarto de tom.
Além disso, deparamos com um tipo totalmente novo de harmonia “incerta”, como se as harmonias houvessem apodrecido: elas têm um gosto forte e agora a deterioração permeia a música.
GYÖRGY LIGETI. Tradução de Jayme da Costa Pinto.
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Quando morreu, em setembro de 1945, em Nova York, Béla Bartók deixou inacabadas duas obras: o Concerto Para Piano nº 3, que desejava entregar como presente de aniversário à sua mulher, a pianista Ditta Pásztory, e o Concerto Para Viola, encomendado em 1944 pelo violista escocês William Primrose.
Acometido por leucemia e já bastante debilitado, Bártok produziu catorze páginas de notas musicais, que constituíram a base do trabalho póstumo de conclusão da obra, realizado por seu amigo compositor e violista Tibor Serly. A superposição de diversas correções no manuscrito e as inerentes incertezas quanto ao seu teor ensejaram o surgimento de novas revisões, entre as quais se notabiliza a que foi editada pelo filho do compositor, Peter Bartók, em 1995.
Apesar do rigor dessas novas revisões, é a versão original de Tibor Serly — executada em primeira audição em dezembro em 1949 pelo próprio Primrose à frente da Orquestra de Minneapolis, sob a regência de Antal Doráti — que vem sendo predominantemente adotada pelas orquestras no mundo [e que será interpretada pela Osesp].
Em três movimentos, o Concerto Para Viola tem a mesma simplicidade de forma e transparência orquestral do Concerto nº 3 Para Piano e, como sempre na obra de Bartók, é marcado pelo rigor estrutural e pelo uso constante da razão áurea e da série de Fibonacci.
No primeiro movimento, a viola em solo enuncia uma melodia popular modal que inclui referências ao folclore escocês, possivelmente como homenagem ao patrocinador da obra. Obedecendo à forma-sonata clássica, a melodia se alterna com cantilenas, passagens dramáticas e virtuosísticas.
Um interlúdio conduzido pela viola em solo abre o segundo movimento, para o qual Serly empresta a mesma marcação de andamento, “Adagio Religioso”, utilizada por Bartók no movimento intermediário do Concerto nº 3 Para Piano. O movimento se caracteriza pelo forte contraste entre o lirismo das melodias em solo concertante da viola, o acompanhamento em coral realizado pelas cordas e a presença episódica de floreios rítmicos da seção de madeiras.
Um novo interlúdio conduz ao último movimento, suspiro criativo final do grande compositor.
No verão de 1939, com 58 anos e já amplamente reconhecido, Béla Bartók instalou-se num chalé em Saanen, na Suíça, com a incumbência de escrever uma obra para a Orquestra de Câmara da Basileia, que resultou no Divertimento Para Cordas.
A encomenda fora feita pelo jovem regente, empresário e filantropo suíço Paul Sacher (1906- 99), responsável também por encomendas de obras de outros grandes nomes da música do século xx, como Stravinsky, Strauss, Hindemith e Lutoslawski. Três anos antes, em 1936, na ocasião do aniversário de dez anos da Orquestra de Cordas da Basileia, Sacher encomendara uma das mais célebres obras do repertório bartokiano: Música Para Cordas, Percussão e Celesta.
Temporariamente isolado dos problemas econômicos e políticos da Hungria e da atmosfera de grande instabilidade que dominava a Europa às vésperas da Segunda Grande Guerra, Bartók respondeu rapidamente e, em apenas quinze dias, compôs esta que é uma das obras mais leves e acessíveis de seu repertório.
Com uma textura ao mesmo tempo delicada e requintada, de caráter espirituoso e alegre, a obra cativa o ouvinte desde os compassos iniciais. Popularizado por Boccherini, Haydn e Mozart, o gênero divertimento caracteriza-se por composições que entretêm tanto os ouvintes como os intérpretes. Mas a obra de Bartók não deixa de ser exigente do ponto de vista de sua execução e jamais esbarra na frivolidade. Um número mínimo de instrumentistas em cada uma das seções da orquestra é especificado pelo compositor (seis primeiros violinos, seis segundos, quatro violas, quatro violoncelos e dois contrabaixos), que habilmente constrói o tecido musical no estilo de um concerto grosso barroco, estabelecendo diálogos entre instrumentos solistas e massa orquestral.
O Divertimento revela uma clareza predominantemente diatônica, que encontra paralelos em obras de Stravinsky, Prokofiev e Hindemith do mesmo período. A peça é construída com enorme rigor, estruturada mais uma vez pelo uso da seção áurea e da série de Fibonacci.
No primeiro e no terceiro movimentos, melodias populares misturam-se a ritmos pulsantes, que se entrelaçam sob formas tradicionais (forma- -sonata e forma rondó, respectivamente) e exalam vigor, extroversão e bom humor. O segundo movimento, por outro lado, é trágico e sombrio, sem perder o caráter de extrema delicadeza e profundidade. Ao escrevê-lo, talvez Bartók já pressentisse os trágicos eventos que marcariam o mundo e sua Hungria natal.
PATRICIA VANZELLA é doutora em música pela Catholic University of America, coordenadora do Projeto Neurociência e Música da Universidade Federal do ABC e professora adjunta no Departamento de Música da Universidade de Brasília. Formou-se em música na Escola de Comunicações e Artes da USP e na Academia Superior de Música Franz Liszt.
PHILIP YANG é mestre em administração pública pela Universidade Harvard e fundador do Instituto Urbem. Formou- -se em música na Escola de Comunicações e Artes da USP e na Academia Superior de Música Franz Liszt.