Dissonância e harmonia, quando utilizadas fora do contexto musical, representam ideias antagônicas. A primeira é associada ao caos, ao incômodo. Já a segunda aparece de mãos dadas à utopia, ao idílico e ao pacífico. Em música, na verdae, a dissonância é abraçada pela harmonia e ajuda a sustentar o jogo de tensões e resoluções que conduzem o discurso musical. Durante o século xx, seu tratamento ajudou não somente na evolução das estruturas musicais, mas também na experimentação de novas sonoridades.
Ginastera escreveu o Concerto Para Cordas em 1965 e o revisou em 1967. A obra é uma orquestração reorganizada de quatro dos cinco movimentos que compõem seu Quarteto de Cordas nº 2, escrito em 1958. Orquestrada, a peça ganha dramaticidade e tem sua força expressiva potencializada.
O primeiro movimento é rapsódico, alternando passagens solistas com a massa orquestral. No decorrer da peça, o uso de dinâmicas extremas, técnicas expandidas e alternâncias de vigorosas passagens rítmicas com adágios líricos e reflexivos ajudam a imprimir uma gama vasta de emoções. As próprias indicações de movimentos — “Scherzo Fantástico”, “Adágio Angustiado” (ou, no original, “Angoscioso”), “Final Furioso” — reforçam essa paleta expressiva e também o desejo de representar paisagens e traços culturais locais, característicos deste último período criativo do autor.
Embora escrito há cinquenta anos, o Concerto Para Cordas desafia o ouvinte contemporâneo pelo uso recorrente da dissonância. Metaforicamente, o recurso propõe um embate com a realidade. Nossa aceitação ou rejeição determina o que procuramos quando imersos no estado de escuta: ora fugir para um mundo ideal, ora conhecer a representação de uma verdade. Sob essa perspectiva, exercitar a escuta da dissonância pode ser uma experiência transformadora: nos coloca cara a cara com o conflito, nos força a conhecer e a lidar com o heterogêneo.
LUCRECIA COLOMINAS é mestranda em Administração Artística no Chicago College of Performing Arts da Roosevelt University.
Beethoven não esperava que o Quarteto de Cordas nº16 em Fá Maior, Op.135, fosse sua última obra, mas tinha em mente que aquele seria de fato seu último quarteto de cordas, ou ao menos o último por um bom tempo, tão longo quanto pudesse imaginar. Mesmo que não antecipasse o quão próximo estava do fim, o compositor não acreditava que lhe restasse muito tempo. Ele escrevera quatro quartetos em dois anos e meio, seus únicos esforços sérios nessa época. Os três primeiros, conhecidos como Galitzins, traçaram uma desintegração contínua e deliberada das normas convencionais de estrutura e lógica. O Quarteto de Cordas nº14 foi uma reintegração, mas num novo plano, não como uma volta ao passado.
O Quarteto em Fá Maior é um olhar de relance, retrospectivo e essencialmente cômico, como a Oitava Sinfonia, mas num plano distinto tanto do passado do próprio Beethoven como do passado clássico. O tom dessa sua última obra, escrita numa época de trauma, quando o corpo do compositor se encaminhava para o colapso, é cheio de riso e ironia — à maneira de Haydn e Mozart —; e, em meio a isso, encontra-se uma canção comovente. No entanto, é difícil definir esse som risonho; não exatamente despreocupado, mais como a performance de um palhaço velho e cansado, um derradeiro sorriso ao tirar o chapéu, uma irônica saída de cena. [...]
Beethoven estava muito doente e talvez já farto de quartetos. Confessou ao editor Moritz Schlesinger que vinha encontrando muita dificuldade em ter ideias para o final: “Aqui, meu caro amigo, está meu último quarteto. Será o último; e realmente me deu muito trabalho. Porque eu não conseguia me forçar a compor o último movimento. [...] E esse é o motivo pelo qual escrevi o lema: ‘A decisão tomada com dificuldade — Tem de ser assim? — Tem de ser, tem de ser!’”1 Esta é uma explicação para a misteriosa inscrição no final do quarteto, ainda que não a única. De fato, como bom compositor do período romântico, Beethoven usou uma passagem de sua vida, recontando-a com a apropriada alegria, mesclada a uma falsa solenidade — adequada tanto à história quanto ao tom do Quarteto.
A história era a seguinte: Ignaz Dembscher, rico amante de música, vinha oferecendo festas em sua casa para apresentar quartetos. Alguns instrumentistas queriam tocar o Quarteto em Si Bemol Maior, mas, quando Dembscher pediu as partituras para Beethoven, descobriu-se que o anfitrião não havia comprado ingresso para a estreia da peça pelo Quarteto Schuppanzigh. Beethoven mandou avisá- -lo que não forneceria a partitura até que o preço do ingresso fosse pago, salgados 50 florins. Ao ouvir isso, Dembscher riu: “Tem de ser assim?”. Ao saber da resposta, Beethoven gargalhou e rebateu [rabiscando na hora um cânone sobre as frases]: “Tem de ser! Pegue sua carteira!”
1. Anderson, Emily (Ed. e Trad.). The Letters of Beethoven, V.3. Nova York: W. W. Norton, 1986, p. 1538.
JAN SWAFFORD. Trechos do livro Beethoven: Angústia e Triunfo (Amarilys, no prelo). Tradução de Laura Folgueira [revista para esta edição].