Estamos diante de um dos monumentos da música ocidental. Nos cerca de 20 minutos das Quatro Últimas Canções, de Richard Strauss, encontram- se dois séculos, o xix e o xx, e quase 200 anos de tradição de Lieder [canções]. Distantes das canções estróficas dos salões burgueses ainda cheirando ao Ancien Régime, mas descendentes da sufocante inquietação amorosa dos Wesendonck Lieder, de Wagner, a composição de Strauss foi influenciada pelas versões orquestradas das mélodies de Berlioz e é mais profunda do que as incursões de Chausson ou Ravel pelo gênero. Finalmente, talvez seja até mesmo parente remota das canções para voz e orquestra de Alberto Nepomuceno, mais “modinheiras” por natureza. Esse é o lugar das Quatro Últimas Canções no nem tão vasto mundo do repertório para voz solista e orquestra.
“Estamos diante da morte?”, pergunta Strauss. Talvez. E se esse texto pudesse ser acompanhado de música, ouviríamos agora quiçá o mesmo acorde que o compositor escolheu para acompanhar as últimas palavras da canção “Im Abendrot” [No Pôr-do-Sol]: ao pronunciar “der Tod” (“a morte”), Strauss faz uma referência a si mesmo, ou melhor, à pessoa que 60 anos antes compusera Morte e Transfiguração. Nesse encontro entre o homem de 24 anos e o de 84, talvez resida uma das mais importantes reflexões sobre as Quatro Últimas Canções.
Falou-se muito que esse conjunto de canções tratava da morte, da visão que um grande artista já bem idoso teria dessa passagem ao “desconhecido”. Porém, da mesma forma que o ciclo foi agrupado após a morte do compositor, fora até da ordem de composição (a primeira canção a ser terminada foi justamente a que figura como última, “Im Abendrot”), muito pode ser discutido sobre o sentido dessas peças para um homem como Strauss, vivendo num tempo que talvez parecesse “emprestado”. Junte-se a isso o fato de que o compositor já parecia ter deixado escrito seu testamento musical, com a ópera Capriccio. Como definir então a relação e a importância entre palavra e música?
Estamos diante de um calmo observador da mudança, e não da voz trovejante de um artista romântico, último grande mestre do romantismo europeu num desafio tardio à inexorável mudança da sociedade. Realmente, pouco do mundo que era familiar a Richard Strauss e à maior parte da civilização ocidental ainda existia. A Segunda Guerra Mundial impusera o fim brutal de um modo de vida, de toda uma organização social. A dor, o ódio e a revolta pelos milhões mortos quase que inexplicavelmente — e, com certeza, indesculpavelmente — ainda ardia na alma da Europa e do resto do mundo. Strauss, cuja relação com o nazismo é até hoje controversa, viveu seus últimos anos obcecado por sua desnazificação. Buscava ver sua música e a si mesmo inocentados de um passado pontuado pela colaboração e pela proximidade com o nacional-socialismo e seus líderes (ao menos até determinado momento). Estaria o compositor anunciando ao mundo uma passagem a um futuro desconhecido?
Estamos prestes a escutar não ao homem, e sim sua alma, sua música. Embora na vida de Richard Strauss suas posições políticas e possíveis crenças sejam um assunto bem menos espinhoso do que com Wagner, Hans Pfitzner ou Carl Orff (para citar apenas três compositores da mesma tradição), entender sua música — e desses outros — como expressão do divino em cada um de nós é uma grande forma de entender como a arte se manifesta. Assim é com o poema que abre o ciclo, “Frühling” [Primavera], de Hermann Hesse. O corpo humano, mortal, poderia ser percebido como essas “cavernas sombrias” onde a alma está presa por sua forma mortal; de dentro, olha (e sonha) com um cenário de natureza, com a beleza idílica da liberdade. Descrita de forma luxuosa na música de Strauss, essa luz que faz com que tudo brilhe adquire quase o caráter de uma revelação. Se a primavera está presente, ela é muito mais brilhante e mágica do que nos descreveria Schumann, por exemplo. O poema conclui a sugestão de que, exposto a esse milagre, o ser se reencontra — um “reconhecimento” enfatizado pela palavra wieder (novamente). O ciclo de canções se inicia onde morte e vida se confundem.
O inevitável outono é o tema da segunda canção, “September” [Setembro]. Igualmente composta sobre um poema de Hesse, é interessante notar a escolha de um mês que, embora indique a proximidade do inverno, ainda está rodeado das flores e cores nascidos na primavera e no verão. Este se faz presente no poema, sorrindo ao ver as folhas que caem uma a uma. Possivelmente, o verão (que resiste por meio das rosas) sabe que a “dor” da estação mais associada com a morte é apenas passageira; em pouco tempo, tudo estará novamente repleto de vida.
A transição poética entre a segunda e a terceira canção é perfeita (ainda que a ordem não tenha sido definida por Strauss). Os “olhos cansados” que se fecham ao final de “September” nos levam ao sono — e ao sonho — de “Beim Schlafengehen” [Indo Dormir]. O motivo condutor do poema, novamente de Hesse, fala dessa expansão da alma e, numa das linhas vocais mais inspiradas de toda a obra de Strauss, descreve como esta voa livremente em direção a uma espécie de noite mágica onde “vive de mil maneiras”. Nessa descrição da morte, a noite que rodeia tudo, como antes a luz tudo envolvia em “Frühling”, confunde-se com a vida.
O ciclo se encerra com o único poema que não saiu da pena de Hesse, “Im Abendrot” [No Pôr-do- Sol], de Eichendorff. Aqui, existe o inegável domínio da morte, sua presença permeia todo caminho sugerido pelo texto e pela música. Com suas melodias, Strauss atravessa a capacidade da palavra e funde os dois autores, Hesse e Eichendorff.
Seja em pequenos solos de violino, de flauta ou na linha vocal, ouvimos reminiscências das três canções anteriores, tão sutis que custa percebê-las. Apenas no final aparece a palavra “Tod” [Morte], proferida pela primeira vez no ciclo. Mesmo assim, ela é seguida de uma sugestão de transfiguração por meio da citação de uma frase de oito notas tiradas de Morte e Transfi guração, poema sinfônico que Strauss compusera tantos anos antes. O compositor nos indica que há um novo ciclo ao fim do caminho. Talvez para aquele homem o que realmente importasse, ao final das contas, era a vida.
Estamos diante da vida. Um elogio à beleza da vida e à morte como parte inevitável e misteriosa dessa experiência. Pois é muito mais das lembranças, das sensações da alma ao expandir-se de felicidade e paz ou da simples beleza do jardim, e não da desolação da morte tão presente naquele 1948, que tratam as Quatro Últimas Canções. Sim, estamos diante do inexplicável prazer de sentir-se vivo.
ANDRÉ HELLER-LOPES é doutor pelo King’s College de Londres e professor da Escola de Música da UFRJ.
Ainda que Elgar tenha continuado a escrever obras orquestrais após a estreia de Variações Enigma, em 1899, os primeiros anos da década seguinte foram dedicados à escrita coral. Durante uma estadia em Roma no fim de 1907, Elgar decidiu se concentrar em compor uma sinfonia baseada num material originalmente escrito para quarteto de cordas. A Sinfonia nº 1 foi concluída de volta à Inglaterra, em 25 de setembro de 1908, depois de três meses de trabalho concentrado.
Sobre esta peça, escreveu para o compositor Walford Davies: “Não há qualquer programa além de uma ampla experiência da vida humana com uma grande caridade (amor) e uma esperança imensa no futuro”. Numa outra carta, desta vez para o crítico Ernest Newman, Elgar dizia esperar que o ouvinte “identifique sua própria experiência de vida com a música à medida que a ouve se desenvolver”.
O grande regente wagneriano Hans Richter, para quem a peça é dedicada, reconheceu sua importância chamando-a de “a maior sinfonia dos tempos modernos” depois da primeira execução, em dezembro de 1908. Nunca uma grande obra para orquestra de Elgar havia obtido tamanho sucesso – nos 12 meses seguintes, a Sinfonia foi executada quase 100 vezes ao redor do mundo.
No início do primeiro movimento, os violoncelos e os baixos estabelecem o tom de Lá Bemol e sustentam rufares silenciosos que antecedem um tema em “Andante”, que, em sua originalidade de orquestração – madeiras e violas com trompas usando surdinas –, prende a atenção de imediato. Depois de uma repetição com a orquestra completa, o tema cede lugar para o “Allegro” em Ré Menor, e o movimento embarca em sua longa e intensa jornada. O final vem num milagre musical quando o tema do “Andante” (que o biógrafo de Elgar, Michael Kennedy, chama de ideia fixa) volta.
O “Allegro Molto”, agitado e apressado, muda completamente o clima. O tema principal do movimento se acalma lentamente num único acorde sustentado de Fá Sustenido, do qual o terceiro movimento, “Adagio”, parte. Esse mesmo tema ralentado, de profunda beleza, dá ao ouvinte um alívio bem-vindo que Richter corretamente comparou a Beethoven. Antes do fim, um terceiro tema sustenta a intensidade e a serenidade do movimento enquanto um clarinete solo leva ao encerramento.
O movimento final começa com menções aos temas que irão aparecer a seguir. Mais lenta, a música proporciona alguns momentos de repouso antes que o tema de abertura da Sinfonia (a tal ideia fixa) comece a ressurgir, num andamento acelerado. Acordes sincopados tentam impedir seu progresso e deter seu voo mas, por fim, nada detém sua apoteose na triunfante conclusão.
ANDREW NEILL é autor de vários artigos sobre Elgar e Richard Strauss e foi presidente da Elgar Society entre 1992 e 2008. Trechos de texto publicado no encarte do CD com a Sinfonia nº 1, de Elgar, com a Filarmônica de Londres sob regência de Vernon Handley (LPO, 2010), republicado sob autorização. Tradução de Rogério Galindo.
PROGRAMA
RICHARD STRAUSS [1864-1949]
Quatro Últimas Canções [1948-9]
- Frühling [Primavera]
- September [Setembro]
- Beim Schlafengehen [Indo Dormir]
- Im Abendrot [No Pôr do Sol]
24 MIN
EDWARD ELGAR [1857-1934]
Sinfonia nº 1 em Lá Bemol Maior, Op.55 [1907-08]
- Andante — Allegro
- Allegro Molto
- Adagio
- Lento — Allegro
53 MIN