Há prodígios e prodígios. Aos 12 anos, Felix Mendelssohn-Bartholdy já havia escrito duas óperas, uma sonata para violino, um bom punhado de canções e mais umas tantas dezenas de peças para piano e órgão. Pouco depois, daria início às suas primeiras composições para orquestra, sob a orientação do professor Carl Friedrich Zelter. Ao completar 14 anos, havia incrementado seu catálogo de criações com nada menos que 12 sinfonias para cordas e começava a demonstrar sua própria voz como compositor.
Esse conjunto de peças permite um notável mergulho no processo de desenvolvimento do jovem Mendelssohn. Apesar de terem sido compostas como simples exercícios de contraponto e escrita orquestral, a qualidade das peças fez com que ganhassem lugar cativo no repertório das orquestras de cordas.
A Sinfonia nº 12 em Sol Menor marca um ponto de inflexão na carreira do compositor, que se sentiria apto a enfrentar desafios mais ambiciosos. O primeiro movimento se inicia em andamento grave, e delicadamente se torna um allegro. O movimento intermediário é o mais lírico, com belas melodias e um aproveitamento inteligente do encadeamento de acordes no ciclo de quintas. “Allegro Molto”, o mais longo dos três movimentos, é cheio de vida, evocando o espírito da música de Vivaldi e de outros mestres barrocos. Para estruturar sua obra, Mendelssohn aproveita os recursos imitativos da fuga, forma típica também do Barroco. É comovente pensar que a Sinfonia nº 12 foi escrita por um menino de 14 anos. Mas sua beleza se sustenta para além do registro do “fenômeno”.
RICARDO TEPERMAN é editor da Revista Osesp e doutorando no Departamento de Antropologia Social da FFLCH-USP.
Em Filosofia da Nova Música, Theodor W. Adorno colocou frente a frente os maiores representantes da modernidade na área da composição — Igor Stravinsky e Arnold Schoenberg. Na leitura do filósofo, um e outro representam princípios inconciliáveis: Stravinsky seria expoente de uma história de decadência, enquanto Schoenberg é visto como herdeiro e realizador da linha evolutiva que remonta a Beethoven e ao idealismo alemão. [...]
Mas Adorno soube notar os aspectos fascinantes de Stravinsky e perceber seu papel especial na evolução musical. De forma totalmente diferente da escola de Schoenberg (da qual Adorno estava mais próximo), manifesta-se nele, por exemplo, a tensão polarizada entre o elementar e o artificial. No contexto da modernidade, “elementar” remete à busca pelo novo, pelo não desgastado, a motivação de deixar o passado para trás. Já “artificial” seria um trabalho irônico ou nostálgico com materiais tradicionais e sua transformação ao mesmo tempo conservadora e renovadora. Por outro lado, até o processo de experimentalismo radical, assim como a invocação racional do método dodecafônico, contém algo de artificialidade.
Nada na música parece ser tão elementar quanto a sua associação à motricidade e à dança, e é desse potencial energético que se nutre a música de Stravinsky em todas as suas facetas. O idioma de Schoenberg, centro-europeu-vienense, mesmo em suas configurações mais excessivas (por exemplo, na “Dança em Torno do Bezerro de Ouro”, da ópera Moisés e Aarão), nunca foi além de uma felicidade de valsa idealizada e típica. Os ritmos de Stravinsky, por sua vez, da Sagração da Primavera até o Neoclassicismo de sua fase posterior, criam um pandemônio do dançante. Talvez “apoteose da dança” (uma etiqueta aplicada por Wagner à Sinfonia nº 7, de Beethoven) seja a fórmula mais breve e mais acurada para uma caracterização geral da música de Stravinsky. [...]
O que continuou sendo um incômodo foi a aparente indiferença de Stravinsky em relação ao material musical e sua tendência de utilizar e exaurir modelos antigos, ou seja, dito de modo superficial: praticar a renovação generalizada em vez da invenção. Poderíamos evocar isso como um impulso “híbrido”. Numa acepção diversa da palavra, Stravinsky também agia de forma “híbrida”, ao avaliar sua própria música como sendo em grande parte livre de emoções, numa essencialidade sem qualquer relação com algo extramusical, que, portanto, não seria acessível a nenhuma interpretação nem a qualquer comentário que ultrapassasse o aspecto composicional-técnico.
Pode ser que nessas ideias apenas se articulassem a ideologia antirromântica e neo-objetiva do incipiente século xx, tão comum nos círculos artísticos. A objetividade de Stravinsky mantém intocada a capacidade transformadora que aparentemente leva o caminho da criação a um zigue-zague estonteante. Mas essa confusão se dissipa quando se reconhece o procedimento híbrido de Stravinsky como seu princípio criativo básico.
O escritor francês Michel Butor observou que Stravinsky modulava entre uma cor exótica e outra, entre um colorido histórico e outro, da mesma forma que um movimento clássico de sonata pode transitar de uma tonalidade para outra. Uma descoberta muito eficaz: em Stravinsky já se pode divisar os fundamentos de uma forma de escrita “poliestilística”, que muito mais tarde viria a ser de central importância para compositores como Bernd Alois Zimmermann e Alfred Schnittke.
O musicólogo Leo Schrade lançou o termo “paródia” no debate, entendendo-o não na acepção estrita de tratamento desfigurante de modelos encontrados, mas sim no sentido de um debruçar-se exaustivo e criativo sobre o material sonoro de diversas origens. Com isso, constata, Stravinsky não teme o contato com o trivial ou com o ordinário, tampouco com aquilo que está historicamente distante.
Nesse sentido, Stravinsky permaneceu fiel a seus princípios em todos os seus períodos — desde a adaptação inicial e a hibridização da tonalidade “russa”, passando pelo Neoclassicismo (seguindo a moda e criando moda) dos anos intermediários, até as aproximações tardias à dodecafonia e ao serialismo. Essa última fase, evidentemente, não foi uma mera virada para o lado da linha seguida por Schoenberg. Foi, antes, o gesto de uma superioridade aristocrática consciente da relatividade de todo o progresso material. Dessa forma, Stravinsky arranjou algo como uma historicização produtiva das descobertas de Schoenberg, que se tornam, para ele, um material com valor de uso comum, manuseável como todo o resto (o que Adorno não havia previsto).
Associadas à fase neoclássica de Stravinsky, as Danças Concertantes foram compostas e estreadas em 1942, em Los Angeles. No primeiro e no último movimentos, duas pequenas marchas funcionam como portais emoldurantes para a obra. Os três movimentos do meio são facilmente identificáveis como solos de dança, bem no sentido da tradição clássica do balé de São Petersburgo, à qual Stravinsky esteve ligado durante toda a vida. A dança enquanto veículo musical: para Stravinsky, nenhuma perspectiva “extramusical”.
HANS-KLAUS JUNGHEINRICH é crítico de música e autor de Der Musikroman: ein anderer Blick auf die Symphonie (Residenz, 1998), entre outros livros. Tradução de Claudia Dornbusch.
A peça Sonhos e Memórias foi imaginada como uma espécie de ode ao sonho. Existem várias interpretações sobre o significado dos sonhos, e as menções ao tema remontam às civilizações mais antigas. A relação de cada um com os próprios sonhos varia: algumas pessoas se lembram mais que outras do que sonham.
O sono divide-se em dois tipos distintos: NREM (non-rapid eye movement) e REM (rapid eye movement). Na fase REM, a atividade onírica é imensa e pode ligar eventos do cotidiano com fortes impulsos emocionais. Esse encontro do dia a dia com as emoções psíquicas pode resultar em imagens absurdamente surrealistas ou plenamente coerentes, dando espaço a interpretações diversas.
Atraído pelo assunto, escrevi Sonhos e Memórias. Traduzir sonhos em sons é um exercício de pura imaginação, tanto da parte do compositor como da parte do ouvinte. De modo mais imediato, podemos relacionar sons espaçados, embalados por uma dinâmica suave, a uma atmosfera onírica. Entretanto, os sonhos podem também ser agitados e ansiosos. Ao escrever Sonhos e Memórias, levei essa multiplicidade de associações em consideração.
A peça começa introduzindo um mero fragmento melódico em busca de um tema. Quando finalmente materializado na seção A, o tema é um leitmotiv apresentado pela primeira vez pelo corne inglês. Esse leitmotiv será então submetido a várias transformações de caráter emocional, que aparecem numa sequência em que cada acontecimento carrega o embrião do próximo. Chegamos então à seção B, que representa um mergulho no sono profundo. Nessa fase, a exploração do leitmotiv é completamente dominada pelo corne inglês, até a recapitulação da seção A, reapresentada com ligeiras modificações, simbolizando a memória do sonho.
SERGIO ASSAD
PROGRAMA
OSESP
CARLOS PRAZERES regente
NATAN ALBUQUERQUE JR. corne inglês
FELIX MENDELSSOHN-BARTHOLDY [1809-47]
Sinfonia Para Cordas nº 12 em Sol Menor [1823]
- Grave. Allegro
- Andante
- Allegro Molto
20 MIN
SÉRGIO ASSAD [1952]
Sonhos e Memórias [2014] [Encomenda Osesp. Estreia Mundial]
7 MIN
IGOR STRAVINSKY [1882-1971]
Danças Concertantes [1942]
- Marche. Introduction [Marcha. Introdução]
- Pas d'Action
- Thème Varié [Tema Variado]
- Pas de Deux
- Marche. Conclusion [Marcha. Conclusão]
19 MIN