No começo do século XX, Paris era destino obrigatório para os compositores espanhóis. O sevilhano Joaquín Turina completou sua formação — iniciada em Madri — estudando com Vincent d’Indy na Schola Cantorum. Seu opus 1, o Quinteto Para Piano e Cordas, inspirado em César Franck, estreou em Paris em 1907, obtendo sucesso de público e crítica. Não obstante, a obra foi severamente atacada por dois compatriotas do autor presentes à estreia, Isaac Albéniz e Manuel de Falla, que recomendaram a Turina ouvir “suas vozes mais íntimas” e levar em conta sua herança de músico espanhol. Albéniz até o fez prometer que nunca mais voltaria a escrever “música como aquela”! Turina levou muito a sério a crítica dos colegas e, durante toda a carreira, seguiu o conselho, buscando inspiração na música espanhola, especialmente na da Andaluzia, sua terra natal.
As Danças Fantásticas foram compostas em 1919, em Madri, onde Turina morou do começo da Primeira Guerra Mundial até sua morte, em 1949. Concebidas originalmente para piano, foram orquestradas pelo autor e apresentadas pela primeira vez ao público em versão sinfônica em fevereiro de 1920 (a estreia da versão para piano ocorreu somente em junho do mesmo ano). Turina selecionou trechos do romance La Orgía, de José Más, como epígrafes dos três movimentos, mas sempre insistiu que sua música não devia ser compreendida como uma interpretação dos textos, e sim que estes tinham “certa conexão com o espírito musical das três danças”.
O primeiro movimento, “Exaltação”, é baseado no ritmo da jota aragonesa e tem a seguinte epígrafe: “Parecia que as figuras daquele quadro incomparável se moviam dentro do cálice de uma flor”. A segunda dança, “Sonho”, utiliza o ritmo peculiar do zortzico basco (em compasso 5/8), mas sua parte central lembra a música andaluza, com arabescos evocativos do cante jondo. Sua epígrafe diz: “As cordas da guitarra, soando, eram como lamentos de uma alma que não podia mais com o peso da amargura”. A terceira dança é intitulada — tal como o romance — “Orgia”. Turina dizia que esse movimento era “um canto ao manzanilha”, ou seja, ao vinho aromático de Sanlúcar de Barrameda, cidade
andaluza situada na foz do rio Guadalquivir. De fato, não há dúvida de que, musicalmente, estamos na Andaluzia: predomina o ritmo da farruca, matizado com toques de flamenco e cante jondo. A epígrafe diz: “O perfume das flores se confundia com o aroma do manzanilha; e, do fundo das taças estreitas, cheias do vinho inigualável, como um incenso, elevava-se a alegria”.
Além de exercer a carreira de compositor e pianista, na juventude Turina foi um regente ativo. Nessa qualidade, em 1917 estreou em Madri a pantomima El Corregidor y la Molinera [O Corregedor e a Moleira], do amigo Manuel de Falla. Essa obra chamou a atenção do famoso empresário russo Serguei Diaghilev, diretor dos Balés Russos e também fugitivo da Grande Guerra, temporariamente domiciliado na Espanha. Não obtendo a autorização de Falla, ainda hesitante quanto a coreografar Noches en Los Jardines de España, Diaghilev conseguiu convencer o compositor a transformar sua pantomima em balé, revisando o conteúdo musical e ampliando a orquestração original (conjunto de 17 músicos) para orquestra sinfônica. Em sua nova forma e com o título El Sombrero de Tres Picos [O Sombreiro de Três Pontas], a obra estreou em Londres em 1919. O cenário e o guarda-roupa ficaram a cargo de Pablo Picasso, a coreografia foi de Léonide Massine, que, além disso, dançou no papel do moleiro, e a orquestra foi regida por Ernest Ansermet. O sucesso da estreia e da posterior divulgação do balé foram tão grandes que, em 1921, Falla decidiu preparar duas suítes sinfônicas, com a finalidade de facilitar a execução da música em salas de concerto. Falla selecionou os números mais significativos da partitura, deixando de lado a música mais ligada aos movimentos cênicos e concentrando-se nas partes cuja estrutura definida possibilitava um funcionamento independente da cena.
A Suíte nº 1 inclui quatro números da primeira parte. Após a breve fanfarra da introdução, “A Tarde” estabelece a atmosfera andaluza e apresenta o maduro corregedor por meio de um cambaleante solo de fagote. A “Dança da Moleira” descreve admiravelmente a altiva beleza da jovem protagonista. O terceiro movimento, brevíssimo, descreve o encontro dos dois personagens tão desiguais, o corregedor e a moleira. Finalmente, “As Uvas” narra o primeiro dos vários logros que o moleiro e sua mulher impingem ao magistrado libertino.
A segunda parte do balé foi ampliada e retocada em muitos detalhes por Falla — seguindo as sugestões de Diaghilev — durante a transformação da pantomima em balé. A Suíte nº 2 reúne três números dela. “Dança dos Vizinhos” comemora a festa de São João, com seguidillas baseadas em temas tradicionais. Em seguida tem-se a “Dança do Moleiro”, fogosa farruca andaluza composta por Falla especialmente para Massine, seu protagonista na estreia londrina. Na “Dança Final”, uma jota, reaparecem os vários temas do balé num ápice triunfal.
CARLOS MARÍA SOLARE é violista, doutor em musicologia pela Universidade Livre de Berlim. Tradução de Ivone Benedetti.