O organista e compositor Dietrich Buxtehude é um dos mais importantes representantes do barroco na música. Seu local de nascimento é contestado, mas sabe-se que cresceu em Helsingborg, então pertencente à Dinamarca (e hoje à Suécia). Filho de alemães, tem até hoje sua nacionalidade disputada por alemães e dinamarqueses. Afinal, a quem não interessaria poder incluir em seu cânone nacional um compositor admirado por ninguém menos que Händel e Bach?
De 1668 até sua morte, em 1707, Buxtehude foi organista da Marienkirche de Lübeck, onde organizou uma célebre série de apresentações musicais noturnas, conhecida como Abendmusik. O musicólogo Christoph Wolff conta que o jovem Bach teria andado cerca de 400 quilômetros de Arnstadt até Lübeck para ouvir Buxtehude e, como teria dito o compositor, “aprender algumas coisas de sua arte”.1
Autor de mais de uma centena de peças vocais, Buxtehude também legou um importante conjunto de composições para órgão. A Chacona em Mi Menor é uma delas, e recebeu orquestração do célebre compositor mexicano Carlos Chávez (1899-1978). A chacona é uma forma simples, muito utilizada no barroco, e consiste numa série de variações melódicas sobre uma mesma progressão harmônica, apoiada por uma linha de baixo recorrente. Em sua versão orquestral, Chávez soube realçar a simplicidade e a beleza das melodias de Buxtehude.
RICARDO TEPERMAN é editor da Revista Osesp e doutorando no Departamento de Antropologia Social da FFLCH-USP.
1. Wolff, Christoph. Johann Sebastian Bach: The Learned Musician. Nova York: W. W. Norton, 2000, p. 9.
O Concerto Para Violão e Pequena Orquestra foi escrito em 1951 por um compositor experiente, de escrita madura, um Villa-Lobos que, no âmbito social, já havia passado pelos momentos de afirmação de brasilidade na Paris dos anos de 1920 e pela aliança com o governo Vargas nos idos de 1930. Tinha se tornado um artista reconhecido internacionalmente, colhendo, havia uma década, os frutos de sua produção.
Última obra que Villa-Lobos escreveu para o violão, o Concerto foi composto por solicitação do violonista espanhol Andrés Segovia (1893-1987). O primeiro encontro entre os artistas, ocorrido em Paris, em 1924, na casa da escritora portuguesa Olga Moraes Sarmento, tornou-se um episódio amplamente retratado pela bibliografia da música brasileira. A versão de Segovia pode ser lida numa importante publicação, a Guitar Review (nº 22, 1958), e a do compositor brasileiro foi recolhida nas anotações feitas por Hermínio Bello de Carvalho durante a palestra que Villa-Lobos proferiu no Conservatório Nacional de Canto Orfeônico (Rio de Janeiro, 1956).
Deixando de lado o aspecto anedótico desse encontro, deve-se ressaltar a importância da parceria para a literatura do violão. Em fins dos anos 1920, Villa-Lobos concluiu a série de 12 Estudos, obra dedicada a Andrés Segovia. Trata-se de um marco na produção brasileira e internacional, tanto pela abordagem inovadora na técnica de execução do violão quanto pelo conteúdo musical que abarca um rico universo de elaborações melódico-harmônicas, pleno de imagens sonoras.
Essas diferentes experiências do compositor com o violão, instrumento que considerava seu “repositório de ideias”, foram amalgamadas neste Concerto, inicialmente denominado Fantasia Concertante Para Violão e Orquestra. A mudança do título ocorreu depois que, atendendo mais uma vez à solicitação de Segovia, Villa-Lobos acrescentou uma cadência entre o segundo e o terceiro movimentos.
É sabido que o violonista participava ativamente do processo de finalização de obras que lhe eram dedicadas. O trecho da carta que endereçou ao compositor mexicano Manuel Ponce (1882-1948), sugerindo modificações no Concierto Del Sur (1941), deixa isso bem claro: “Pense, querido Manuel, numa cadência menos poética e mais brilhante no último movimento. Para a maioria do público ignaro, a cadência é como o dó de peito do tenor [...] — há quem vá só para isso”.1
Passaram-se alguns anos até que Segovia estreasse o Concerto de Villa-Lobos nos Estados Unidos, em fevereiro de 1956, com a Orquestra Sinfônica de Houston, regida pelo compositor. Os três movimentos que compõem a obra foram pensados tendo em vista uma escrita orquestral equilibrada, que permitisse liberdade de expressão violonística a despeito dos problemas de projeção sonora característicos do instrumento. Ainda assim, não deixam de existir momentos em que a presença orquestral dificulta a compreensão da execução solista.
No primeiro movimento, “Allegro Preciso”, destacam-se dois temas principais de caráter contrastante. O que abre a obra, essencialmente rítmico, permeia a construção de toda a primeira parte, sendo executado pelos diferentes naipes da orquestra. Durante o percurso, o violão apresenta elaborações técnicas que englobam arpejos, escalas e frases percussivas. Um novo tema, sutilmente enunciado pela orquestra, é então executado pelo solista. Trata-se de uma bela melodia, que insinua uma cantiga popular, apresentada nos diferentes graus da escala, em típicas progressões villa-lobianas. O movimento se conclui bruscamente com a retomada, sem muita preparação, do tema rítmico inicial.
O “Andantino e Andante” apresenta uma fatura delicada em que o violão, reiteradamente arpejado, conduz uma linha melódica que brota dos acordes, até a chegada do andante, quando a voz principal passa a ser enunciada pelos baixos do instrumento. A orquestra assume a condução melódica num clima de grande expressividade, que conduz à reapresentação do tema pelo solista. Chega-se assim à “Cadência”, que retoma e elabora materiais temáticos apresentados anteriormente.
Os aspectos virtuosísticos da parte solista ficam por conta das escalas descendentes, das frases percussivas resultantes da combinação de ligados articulando cordas soltas, até o ponto final, em que sobressaem acordes destacados por forte acentuação.
O último movimento, “Allegro Non Troppo”, é essencialmente rapsódico, iniciando-se com um material rítmico executado pela orquestra, ao qual responde um violão continuamente arpejado, que irá retomar a rítmica inicial em blocos de acordes. Surge um novo tema, apresentado pela orquestra em andamento vivo, que conduz a uma seção em que os acordes do violão dialogam com a melodia tocada pelo fagote. Um novo motivo, enunciado pelas cordas graves do instrumento, desemboca num material de grande dificuldade técnica para o solista, até a retomada final da linha melódica que sobressai dos acordes percussivos.
Trata-se de uma obra fundamental do repertório violonístico, amplamente registrada e apresentada nos quatro cantos do mundo pelos mais importantes intérpretes que se dedicam ao instrumento.
MÁRCIA TABORDA é professora de violão da Escola de Música da UFRJ e autora de Violão e Identidade Nacional: Rio de Janeiro, 1830-1930 (Civilização Brasileira, 2011).
1. Alcázar, Miguel. The Segovia-Ponce letters. Columbus: Orphée, 1989, p. 223.
A Cantata Criolla, do compositor venezuelano Antonio Estévez, é uma das joias da música coral latino-americana. Inspirada por um poema do famoso escritor Alberto Arvelo Torrealba, a peça usa melodias, ritmos e instrumentos intimamente associados aos Llanos (região das grandes planícies) da Venezuela.
O poema “Florentino e o Diabo” tem raízes profundas no espírito popular venezuelano. Nessa narrativa mítica, o llanero reúne toda sua força interior para rejeitar o Diabo, vencendo o espírito das trevas com o simples uso da palavra e do canto. No movimento final, clímax da obra, a orquestra se transforma numa banda popular, cheia de harpas e maracas, apresentando a competição de canto no estilo joropo.
A peça combina magistralmente as modernas técnicas de composição com a música popular. Ela incorpora dois cantos gregorianos: a “Ave Maria” é identificada com Florentino (o llanero) e o “Dies Irae”, intimamente relacionado à Missa dos Mortos, é ligado ao Diabo. Essa fantástica peça recentemente celebrou seu sexagésimo aniversário, e tenho a honra de reger o que será provavelmente sua estreia brasileira, com os fabulosos músicos e cantores da Osesp.
GIANCARLO GUERRERO. Tradução de Rogério Galindo.