Depois da estreia de La Mer [O Mar], em outubro de 1905, o crítico M. D. Calvocoressi julgou reconhecer “uma nova fase na evolução do sr. Debussy: a inspiração da obra é mais viril, suas cores mais francas, seus contornos mais acentuados”.1
Mais de um século depois desse comentário, ideias como “virilidade” e “franqueza” ainda nos parecem algo alheias à música de Debussy; o tom evanescente do Prelúdio Para a Tarde de um Fauno (1894) continua a predominar na imagem que temos do compositor.
Embora La Mer seja uma obra tipicamente debussyana na sua capacidade de evocar efeitos de água, de sol, de sombra e de luz, chama de fato a atenção que o primeiro e o terceiro de seus movimentos não recusem a retórica sinfônica do final de efeito, harmonicamente satisfatório e conclusivo.
Essa dicção impetuosa — e mesmo violenta — haverá de ser notada com mais facilidade numa transcrição para dois pianos. Ainda que se percam as cintilações e as voragens da grande orquestra, sobressai na audição o que há de rigoroso, de arquitetado, numa obra tão fluente e persuasiva. O recurso quase obsessivo a motivos breves, de quatro notas, não mais se cobre das pedrarias da orquestra. Torna-se mais nítida, sem dúvida, a montagem desse quebra-cabeça, desse dominó em que frases se levantam do grave ao agudo e recaem para o grave, num movimento de espelho, como ondas que se formam e quebram em sucessão.
Elementos circulares, em sobe e desce, ao lado de finalizações efetivas, resolvendo tensões de uma vez por todas: La Mer concilia, na verdade, duas tendências na música sinfônica francesa do início do século XX. Tratava-se de enfrentar a herança da “forma cíclica” — a grande obra nascida de uma célula única, na lição de Liszt aproveitada por César Franck, Camille Saint-Saëns e Vincent d’Indy — e a tradição francesa da música de balé, com seus “quadros”, personagens, aparições, vinhetas e volteios.
Entre sinfonia e dança, entre a transfiguração dos temas e o frêmito das repetições, entre correnteza e brisa, La Mer surge como uma obra sem paralelo, milagre de coerência e instabilidade, de estrutura e de capricho.
Os Seis Estudos em Forma de Cânone, de Robert Schumann, provêm de um período (os anos de 1844-5) em que o compositor se debruçou sobre a técnica de contraponto de Bach. O uso do cânone, escrita em que duas ou mais vozes se imitam bem de perto, não resulta — nas mãos de um poeta como Schumann — em aridez acadêmica. O encanto dessas peças, originalmente escritas para um piano, ao qual se adaptava um segundo teclado a ser acionado com os pés, não passou despercebido a Debussy, que as transcreveu para dois pianos. A primeira peça, lembrando as invenções a duas vozes de Bach, não terá também, nessa leitura debussyana, um quê do “Doctor Gradus ad Parnassum”, a primeira página de Children’s Corner, do compositor francês?
Foram muitas as composições de Mozart para um único instrumento de teclado a quatro mãos. Para dois pianos, entretanto, o catálogo Köchel registra apenas esta irresistível e vivíssima Sonata em Ré Maior, KV 448, de 1781, e a complexa e grave Fuga em Dó Menor, KV 426, bem ao estilo de Bach. Talvez por essa vizinhança, o musicólogo Alfred Einstein considera que “essa sonata aparentemente superficial e deliciosa traz a marca das obras mais profundas que Mozart jamais compôs”.2 Profunda? Outro crítico, Arthur Hutchings, não vê razão para esse adjetivo; de fato, esta é uma obra extrovertida, liberando disposição por todos os poros.3
Superficial ou profundo? A oscilação vem sempre à baila quando se fala de Francis Poulenc. Terminada em 1953, a Sonata Para Dois Pianos faz conviverem, sem muitos extremos, o lado gaiato e o lado místico do compositor. Seu terceiro movimento, “Andante Lyrico”, seria para Poulenc o coração de toda a Sonata; em sua compostura e nobreza (menos neoclássicas, talvez, do que art déco), podemos ver algo do espírito presente na ópera Diálogos Das Carmelitas, obra-prima de dramaticidade composta na mesma época. No segundo movimento, está o lado mais vivo e provocativo de Poulenc. Um piscar de olhos, quem sabe, para a feliz motricidade de Mozart no KV 448?
“Tirando Mozart, Debussy é meu compositor preferido”, disse Poulenc numa entrevista.4 Adorava Schumann também; neste concerto, as afinidades se cruzam, de século a século, de um piano a outro.
MARCELO COELHO é colunista do jornal Folha de S.Paulo.
1. Apud Charton, Ariane. Debussy. Paris: Gallimard, 2012, p. 212.
2. Einstein, Alfred. Mozart. Paris: Gallimard, 1991 [1953], p. 347.
3. Hutchings, Arthur. “La Musique de Clavier”. In: Robbins Landon, Howard Chandon e Mitchell, Donald (orgs.). Initiation à Mozart. Paris: Gallimard, 1959.
4. Poulenc, Francis. J'Écris ce Qui me Chante. Paris: Fayard, 2011.
PROGRAMA
ÉRIC LE SAGE piano
FRANK BRALEY piano
ROBERT SCHUMANN [1810-56]
Seis Estudos em Forma de Cânone, Op.56 [1845]
- Nicht zu Schnell [Não Muito Rápido]
- Mit Innigem Ausdruck [Com Bastante Expressão]
- Andantino
- Innig [Expressivo]
- Nicht zu Schnell [Não Muito Rápido]
- Adagio
22 MIN
CLAUDE DEBUSSY [1862-1918]
La Mer [O Mar] [1903-5]
- De l'Aube à Midi Sur la Mer [Da Alvorada ao Meio-dia no Mar]
- Jeux de Vagues [Jogo Das Ondas]
- Dialogue du Vent et de la Mer [Diálogo do Vento e do Mar]
24 MIN
______________________________________
WOLFGANG AMADEUS MOZART [1756-91]
Sonata Para Dois Pianos em Ré Maior, KV 448 [1781]
- Allegro Con Spirito
- Andante
- Allegro Molto
24 MIN
FRANCIS POULENC [1899-1963]
Sonata Para Dois Pianos [1953]
- Prologue: Extremement Lent et Calme
- Allegro Molto - Très Rythmé
- Andante Lyrico - Lentement
- Epilogue: Allegro Giocoso
19 MIN