O madrigal surge como uma forma poética (e musical) no século XIV. No século XVI, o termo já era empregado para denominar um gênero de polifonia vocal que, na realidade, nada herda, poética ou musicalmente, de seu homônimo. Como testemunha Antonfrancesco Doni no seu
Dialogo Della Musica, de 1544, era música geralmente cantada por amadores cultos para pequenos públicos e, graças ao então recente advento da imprensa, muitas vezes era publicada antes mesmo de ser executada.
No final do século XVI, se desenvolveu a dita seconda pratica, uma forma de composição ousada, em que as dissonâncias faziam parte do discurso musical, elevando a intensidade do discurso poético. Eram bem-vindas todas as formas melódicas e harmônicas contrastantes, que trouxessem à luz a poesia dramática, sensual e intensa de autores da época, como Guarini e Tasso, ou antigos, como Petrarca. A música deveria servir à poesia, e a experiência madrigalesca levava em direção à meraviglia barroca.
Se Claudio Monteverdi e Carlo Gesualdo foram contemporâneos e compartilharam o gosto pela polifonia dramática, as coincidências acabam aqui. Os dois viveram existências completamente divergentes, o que suas obras refletem. A aproximação entre os dois gênios provoca um efeito de contraste típico do barroco. A música de Gesualdo é um elogio à melancolia e à angustia existencial; a de Monteverdi, um grande raio de esperança e amor à poesia.
Monteverdi, o divino Claudio, considerado o “inventor” do barroco, de início se serviu do gênero madrigal como campo de experimentos harmônicos. Posteriormente, rompeu com suas estruturas fechadas, aproximando-o da então recém-criada ópera, exacerbando a expressão da potência patética dos contrários. Viveu para a música, primeiramente servindo à corte dos Gonzaga, em Mântua, e, em seguida, como maestro de capela da Basílica de São Marcos, em Veneza. Entra para a história como catalizador da seconda pratica, com uma contribuição fundamental para o nascimento da ópera e ainda como o pai do barroco. A leitura de suas cartas e prefácios revela a simplicidade humana na escrita de um gênio musical.
Príncipe de Venosa, cidade perto de Nápoles, Carlo Gesualdo foi uma figura extremamente atormentada, com uma história pessoal digna de um thriller. Consta em sua biografia ter assassinado a primeira esposa e o amante desta — de forma absurdamente cruel. Também se dizia que praticava magia negra e outras obscuridades, o que, de certa forma, se traduziria nas tortuosidades de seus madrigais. Consagrou a parte mais substanciosa de sua produção musical a este gênero, mantendo sua estrutura de base, mas levando-o ao extremo de suas possibilidades e dilatando os afetos por meio de cromatismos, numa conexão extrema com a retórica sugerida pelo texto.
A maioria dos madrigais que integram este programa se enquadra na chamada seconda pratica. Os de Gesualdo fazem parte de seu quinto livro, publicado em 1611, juntamente com seu último. Se em madrigais como Dolcissima Mia Vita [Dulcíssima Vida Minha] as dissonâncias e os cromatismos estão em primeiro plano, o último madrigal do livro, T’Amo, Mia Vita [Amo-te, Vida Minha], com texto de Guarini, é mais econômico nesses recursos, provavelmente pelo caráter amoroso e menos exacerbado da poesia.
Entre os madrigais de Monteverdi, o Lamento d’Arianna [Lamento de Ariadne], de seu sexto livro, publicado em 1614, merece especial atenção. A peça fazia parte, em versão monódica, de sua ópera Arianna (1608), e é o único excerto que conhecemos hoje, tendo sido numerosas vezes publicado e adaptado em versão madrigalística. Todo o resto da partitura de Arianna se perdeu. Trata-se de um madrigal imbuído de teatralidade e um primeiro resultado da influência do novo gênero na polifonia vocal.
Luci Serene e Chiare [Olhos Serenos e Claros] (com texto de Ridolfo Arlotti), A un Giro Sol de’ Begl’Occhi Lucenti [Com um só Giro Dos Olhos Belos e Brilhantes] e Io mi Son Giovinetta [Sou Jovenzinha] (com texto de Guarini) fazem parte do polêmico quarto livro de madrigais. Foi com exemplos de dissonâncias e rupturas das regras harmônicas presentes no quarto e no quinto livros de Monteverdi que o canônico e teórico Giovanni Maria Artusi publicou, em 1600, uma ferrenha crítica ao compositor. Assim, não é de estranhar que a escrita dos madrigais do quarto livro tenha representado um marco para a modernização do gênero e para a seconda pratica. Tal modernização pode ser notada se confrontarmos estes madrigais com Baci, Soavi e Cari [Beijos, Soaves e Queridos] (também com texto de Guarini), publicado no primeiro livro de Monteverdi, então ainda conhecido somente como discípulo de Marc’Antonio Ingegneri.
Algo de intensamente barroco norteia esse encontro entre Gesualdo e Monteverdi: a arte de aproximar os opostos, o claro e o escuro, o amor e a guerra, a vida e a morte. Assim como a nova monodia acompanhada, o madrigal é o gênero porta-voz da célebre sentença monteverdiana: a poesia deve ser senhora da música, não sua serva.
LIGIANA COSTA é mestra em Filologia Musical Medieval e Renascentista pela Faculdade de Cremona (Itália) e doutora em Ópera Barroca pelas universidades de Tours (França) e Milão (Itália). Atualmente, realiza pesquisa de pós-doutorado na USP com apoio da Fapesp.
CORO DA OSESP
NAOMI MUNAKATA regente
CARLO GESUALDO [1561 - 1613]
Dolcissima Mia Vita [Dulcíssima Vida Minha] [1611]
Itene, o Miei Sospiri [Ide, ó Meus Anseios] [1611]
Se Tu Fuggi, Io Non Resto [Se Fugires, Não Ficarei] [1611]
T'Amo, Mia Vita [Amo-te, Vida Minha] [1611]
Felicissimo Sonno [Sou Felicíssimo] [1611]
O Dolorosa Gioia [Ó, Dolorosa Alegria] [1611]
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CLAUDIO MONTEVERDI [1567 - 1643]
Lamento d'Arianna [Lamento de Ariadne] [1614]
Baci, Soavi e Cari [Beijos, Suaves e Queridos] [C. 1587]
Luci Serene e Chiare [Olhos Serenos e Claros] [C. 1603]
A un Giro Sol de' Begl'Occhi Lucenti [Com um só
Giro Dos Olhos Belos e Brilhantes [C. 1603]
Io mi Son Giovinetta [Sou Jovenzinha] [C. 1603]
Ecco Mormorar l'Onde [Eis Que as Ondas Murmuram] [C. 1590]